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quarta-feira, julho 30, 2003

O CIRCO NA GARAGEM (2) 

1 espectáculo X 3

Conheço aquela voz d’algum lado! Juro qu’é verdade! Tem cor de farturas, de choques de carrinhos eléctricos, de cheiro a sardinhas e a frango nas brasas, de rodopio, da gente a tar assim a modos qu’a’cair dum abismo abaixo, de anda cá meu malandro que são horas de jantar! E tá aqui na minha rua, agora mesmo, à minha hora de mandar os putos prá mesa e jantar e depois cama q’amanhã bem cedinho vamos todos p’rá Caparica. Com o cheiro a hambúrguer e a batatas fritas do nosso jantar mistura-se, vindo lá da rua, o de chóriço assado e um outro que não sei de que é. É de maçaroca de milho, ri-se o amigo do meu mais velho que vive prás bandas da Damaia. Vou ali e já volto, digo à família – embaraçado como os traquinas dos meus filhos q’ando se piram c’uma mentirola qualquer mal enjorcada.
A voz é daquele rapaz magro que segura um microfone e uma espécie de amplificador – como os das manifes da Inter, mas mais moderno. No meio da rua diz qu’é o Circo e o que vamos ver é Circo. Circo! Eu bem sabia. Vou lá ver um bocadinho, é só o tempo de palitar os dentes, juro. São muitos, os artistas, rapazes e raparigas muita novos. O moço magricelas, vestido de preto, como nos casamentos, nã pára de falar. Anuncia coisas. Números de circo, acho. Mas isto nã parece bem um circo. Ah, tá ali um tipo, meio monhé, a assar chóriço e maçaroca de milho. E dá à malta pra comer. Vou lá ver se me dá uma rodelita de chóriço. Já não há, merda! Só maçaroca. Nã gosto. Acho que nã gosto. Anda tudo aos saltos e a fazer maluquices. Vou ver se percebo o que diz o asas de grilo. Olha, um maluco tá a tentar mergulhar na tampa de plástico duma garrafa d’água. E a garina ao pé dele tá a tentar acender um fósforo olhando só pró espelho da carrinha. Outra maluca tá no tejadilho a enrolar cabos. Pra quê? Outra ó lado dela tem asas de anjo e parece triste. Nã percebo. Outro gajo bate num bidon com outro lá dentro e diz qualquer coisa de impostos e da Manela Azeda o Leite. Boa! Um que faz de velho põe-se a fazer o pino e a dizer números de passes sociais. Ganda maluqueira. O asas de grilo diz q’agora vai haver a rendição da guarda. Tá tudo maluco! Uns imitam cães a ladrar, outros cacarejam! E agora o gajo diz q’o circo continua lá dentro, prá malta mostrar ós guardas o bilhete ó o convite. Que se lixe, nã entro. Lá dentro ainda deve ser uma maluqueira maior. Vou mas é ao café e ao bagacinho, q’amanhã, bem de madruga, ala! prá Caparica. Gandas malucos! A ‘nha’maria nem vai acreditar. Memo aqui ao pé de casa. Circo!

Coitado do trolha. Ainda bem que não entrou para o espectáculo. Ainda se ia sentir mal. Isto não é teatro para a malta aqui da rua. Malta popular só gosta do La Féria, da Amália e de sardinhas assadas. Deixa-me prestar atenção. Parece que os espectáculos deste grupo são muito difíceis, cheios de referências culturais, é o que me dizem. Não sei porquê, nunca me deu para ver nenhum. Sempre que ouvia falar em Garagem lembrava-me logo aqueles tempos do PREC em que saia sempre com dores nas costas daqueles malditos bancos corridos. Gosto mais do Teatro Aberto, do Villarett, confortáveis, teatro sério, com bom gosto. Esta malta parece um bocado maltrapilha, espero que me engane. Que chatice, as cadeiras são desconfortáveis, eu já desconfiava. Bom, paguei o bilhete, deixa-me lá ver no que isto dá. “Talking heads”. Não percebo nada. Palavras, tantas palavras: “cortaram-me as partes sujas”, “cortam as mãos a um tipo...”, “lembramo-nos apenas das amputações”, “gostava de tocar flauta” – boa, eu gostava era de fugir daqui, mas parece mal, estou tramado, o trolha de há bocado é que fez bem, foi para a tasca embebedar-se. “Apetecia-me tocar flauta e comer melancia”, “sai ar da minha boca”, “não nos perguntaram nada, esqueceram-se de nós...” A coisa parece que se repete sempre e depois percebe-se alguma coisa, os actores são bonzinhos, talvez a coisa melhore. Entra um tipo a correr pela sala e diz que é o Público. O Apresentador, ou Chefe de Pista ou lá o que é, faz-lhe uma magia qualquer; outro, que parece um Drácula, quer beber-lhe o sangue, “um público bebível sempre à mão!” Estão doidos! Há uma Diadora que é marca de ténis! Doidos de todo... Agora temos que levar a cadeira para a cena. Uma tipa numa espécie de tenda semitransparente, uma tal Amazona Gorda. Mais palavras que nunca mais acabam. Diz que começou a inchar por razões de segurança, acho que é trapezista. Olha, agora é a vez de um Cozinheiro, Francês, parece, que lhe leva um prato de lentilhas. Ela não quer, mas ele diz que se ela comer as lentilhas lhe dá como sobremesa maçã caramelizada. A tipa come as lentilhas e a maçã. O Cozinheiro Francês quer matar-se porque ficou sem uma estrelinha no guia mundial de restaurantes. Ela também quer matar-se. “Não te suicides, vamos antes praticar equilibrismo”, fazer o “milagre alquímico da transformação da gordura em vida”, cair lá em baixo e ser um puzzle: as palavras zumbem à minha volta...”é triste amar mais deus do que a mim...”, “... as trevas do abismo...”, “por que é que preferes o nome de Deus?”. “Há mais mistério no amor que na morte” – nisso estou de acordo. Afinal a Trapezista é um rapaz que gosta de roubar fruta verde: isto deve querer dizer alguma coisa bem profunda... E lá vamos nós com as cadeiras para outro lado. “Forças Combinadas”, diz o Apresentador. Não vejo nada. Com a andança das cadeira fiquei atrás de uma coluna da sala. Um tipo e uma tipa andam à roda numa placa giratória. Parece que falam de desencontros mas “são os desencontros que fazem com que tudo funcione na perfeição.” Estou cá com um sono, meu Deus! O quê? Agora querem meter um machado no cu? Valha-me Deus. Será que ainda vai haver sangue? Que grande chinfrim,os outros actores interrompem a conversa e desata tudo a fazer barulho na cena principal. Já não ouço nada... Outra volta na cadeira. Abrem o portão de ferro que dá para a rua. “Domador de Feras”, agora é que é! Incendiaram o passeio, estão loucos. Um tipo em tronco nu fala como nas tragédias gregas, Clitenmestra ou não sei quê, não percebo nada de mitologias e de deuses. O tipo leva aquilo a sério. É Domador de Feras mas o Apresentador é que bate com um chicote. Repete o Domador: “Como começou tudo?” Sei lá eu! Grito e ninguém me ouve! E grita o actor “Mostrem os monstros!” O Apresentador diz que o circo é um círculo. A minha cabeça é que está a andar à roda! “Se repetirmos o mundo salvamos o mundo”. Está bem, salvem lá quem quiserem mas acabem com o nosso sofrimento. O quê? Parece que dormitei. Está uma jovem a torcer-se toda, deve ser Contorcionista. E fala como uma velha. E uma miúda com totós. Garota, mesmo. “Uma fantasia perversa pode salvar-nos da falência técnica.” Mais dois garotos. De casaco da tropa mas com collants. Dizem que os filósofos também se acabaram, tal como os cães amestrados e não sei quem mais lá do circo. Mas dizem que aquilo não é um problema, é um número de circo. Não sei. Anda por aqui a correr um tipo vestido de urso polar. E um deles pergunta se 300 quilos de ternura não é peso a mais. Se eles não sabem eu também não sei. Ora bolas! O Apresentador apresenta uma parelha de palhaços – duas miúdas: o Du e o Pont. Obrigado, esta também eu sei, é uma paródia ao Dupont e Dupond do Tin Tin. “Divirtam-se connosco”, dizem, “vamos fazer coisas fantásticas, como por exemplo, dormir!” É o que me apetece fazer – há que tempos... Agora põem-se todos, a trupe toda, parece-me, a preto e branco, a fingir que dançam. Que sono, meu Deus! Silêncio. Dormir. Uma, pendurada num trapézio. Outra, deitada no chão com uma coleira branca ao pescoço. A do trapézio, de vez em quando diz “Rádio Trapézio não fala a verdade” A do pescoço partido vai para o trapézio. Vozes: “Se largasse o trapézio ficaria no ar para sempre”. “Eu só quero ser feliz”. “Se recitares um poema suportas melhor essa dor nos pulsos” Acordo com um sujeito a dizer-me para subir as escadas. É a terceira parte. Andam todos a passar os dedos nuns copos de água. Fazem uma espécie de música embriagante. Agora é que vou mesmo dormir. É só apanhar uma cadeirinha lá em cima.

Aquele sujeitinho com ar de administrador de empresas chegou cá acima já a dormir. Agora ressona baixinho. É um tipo educado, até a ressonar! O que se passará na cabeça e no corpo de cada um de nós? Que lugar pertence a cada um de nós neste Circo, círculo? Qual é o meu “número”? Qual é o teu “número”? Os “números” da malta do bairro de lá de fora, o daquele sujeito bem-posto, o meu também, aspirante a fazedor destas coisas? Não sei. Ver este espectáculo ajuda-nos no caminho, na procura, só isso. E é muito. Atenção. Cheguei aqui já com o barulho surdo da pedra rolante que o Fernando manipula com um imenso, intenso, sentido de ritmo – mas um ritmo que não é da música, um ritmo que é de antes de existir música. Deixo-me ainda penetrar por esse ritmo e só depois pela música do gotejar da água na bacia de pedra antiga roubada a um qualquer templo antigo. Nesta terceira parte, depois da morte do Circo – do Circo? – o Domador de Feras toma conta do Circo – qual? Diadora continua a arrastar atrás de si o Público. Mas os seus pés estão pesados... Agora, é domadora de Pombas – as que têm a cabeça arrancada pelo Carniceiro, figura que configura uma contemporaneidade de mistura com tempos míticos: é ele que se convoca para a salvação, por uma espécie de retorno ao tempo em que é possível pensar tudo de novo – numa geografia onde também se move o Mago Juba em se que transformou, pela morte, O Circo/Apresentador/Chefe de Pista/Actor Miguel Mendes. Juba é também o que questiona o abandono de África, da África “portuguesa”, entenda-se. O Carniceiro representa o quê, afinal? “Nem tudo vai mal em Portugal // iô!”, “Paciência é a ciência do pá // iô!” Escárnio, crueza, humor, amor, fim, princípio... o quê? Diadora acaba por casar com ele – foram felizes durante cinco anos, o Carniceiro adorava a cabeça oca de Diadora... Diadora está dividida entre o conformismo e a adulação do Público e a impertinência e a crueldade do Carniceiro. Mas nenhum, na verdade, vencerá. Juba, O Mágico guarda a sua “portucalidade encaixotada”; deambula pelo tempo e fora dele – à espera de um tempo em que não se sabe se ainda acredita. “Devíamos ter confiado no Carniceiro” – em vez de todos os Partidos que diziam defender a (segunda) pátria (abandonada). Para Juba, o Carniceiro era acima de tudo “um esteta que dominava os mecanismos do desejo e do medo” – “talvez ele nos salvasse”... Asserção perigosa, no mínimo, que, fora da história, prega a salvação acima dos homens... “Qual era o nosso país, afinal?” “Não consigo deixar de pensar que talvez o Carniceiro pudesse ter sido nosso pai” Ele, o Carniceiro: “Porque a merda cheira sempre mal // independentemente da classe social” – e põe-nos a cantar! E cantamos. De quê? Por quê? “Os pássaros de cerâmica inglesa começam a chilrear” – “O teatro é a salvação” “Salvação de quê?” Juba explica-nos a importância do fototropismo: é necessário o húmido e o escuro para a vida acontecer: “é por isso que Deus não pôs uma janela na barriga das grávidas.” Os pássaros de cerâmica inglesa começam a chilrear – sem aspas. O teatro é a salvação – de quê?

[Texto escrito em 30 de Julho de 2003, após ter presenciado pela segunda vez, em 29 de Julho do mesmo ano, o espectáculo Circo, pelo Teatro da Garagem]



domingo, julho 20, 2003

O CIRCO NA GARAGEM 

Assisti há pouco mais de uma hora ao espectáculo Circo, do Teatro da Garagem. Apetece-me escrever um pouco sobre o que vi, mas antes de mais deixo um aviso à navegação: o que se segue não é uma critica jornalística, é um apenas um brevíssimo conjunto de notas de alguém que escreve e faz teatro e, sobretudo, gosta muito de teatro.
Não vi todos os espectáculos da Garagem. Mas desde há uns anos a esta parte que procuro acompanhar as suas produções. A Garagem é um dos projectos que me apetece acompanhar, independentemente do grau de conforto e de prazer que cada um dos seus espectáculos em mim suscita. Hoje deu-me para pensar a causa disso. Longe de qualquer tentativa de fechamento analítico, sei, ou julgo saber, é melhor assim, duas ou três coisas (coisas que suspeito serem partilhadas por outras pessoas). Como outros projectos (em todo o mundo), este é um projecto de um criador, o Carlos Pessoa; não por ele ser escritor e encenador (e às vezes muitas outras coisas) em simultâneo, mas porque é ele que unifica e procura dar coerência a cada espectáculo no interior de um outro projecto, muito pessoal, que é fruto das suas especificas manias, preocupações, obsessões, vontades, ideais (e pode pôr-se aqui muitíssimos etcs). Creio que é paradigmático desta ideia de projecto os seus ciclos antecipadamente programados (Pentateuco - Manual de Sobrevivência para o Ano 2000 e O Livro das Cartas do Tesouro). Outra particularidade, e apercebo-me agora da dificuldade de falar disso, respeita ao modo muito singular como se aborda na Garagem, por processos distintos, o trabalho com o texto, com os actores e com a matéria plástica (chamemos-lhe assim em falta de outra designação mais apropriada). Os actores: sinto sempre uma enorme liberdade no seu trabalho, mas uma liberdade que não despreza o sentido da eficácia comunicativa; e este não é um factor desprezável, sobretudo se considerarmos que os actores se debatem sempre com dois espartilhos muito fortes: o texto, fragmentário até aos limites e excessivo (prolixo e neo-barroco, diz o Carlos serem os seus textos antes de Os Donos dos Cães, de 2002 - e aqui, Carlos, deixa-me dizer-te, discordo de ti; mas teremos oportunidade de falar disso); e a matéria plástica que funciona simultaneamente como dispositivo simbólico (igualmente excessivo) e como matéria orgânica (muitas vezes duplamente orgânica: no seu jogo corpóreo relacional e nas próprias matérias utilizadas). Do texto, que acabei por ir aflorando nas linhas atrás, hei-de falar mais demoradamente noutra ocasião. Refiro somente uma discordância com o que o Carlos diz a propósito desta sua nova fase que considera ser a de uma "escrita concisa e sintética": não duvido da sinceridade da sua intenção mas não me parece atingido esse desiderato - o texto que hoje ouvi tem uma forte marca barroca (uma nota: o texto que ouvi ler, outro dia, na livraria Eterno Retorno, O Significado da Mobília, pareceu-me mais próximo dessa intenção, uma escrita mais "enxuta" mas sem perder, digamos, automatismos de escrita, um certo descontrolo, que a mim muito me agrada, eivada de tiradas surrealizantes e de non sense).
Vou ter que parar por aqui (é que isto de escrever também cansa...). Mas hei-de voltar - com gosto - a reflectir sobre a Garagem (agora quase não falei do espectáculo que hoje vi! E já agora, para os comparsas deste blog: não percam o CIRCO!
Últimas notas, muito pessoais: gostei muito de ver as "minhas duas meninas"! E gostei muito de ti, Carlos O.! E gostei muito de ti, Miguel! Cláudia: a tua Diadora da terceira parte é uma beleza de contenção e de emoção interior! Luís: foi uma bela surpresa ver-te! Adoro os actores, esses "heróis frágeis"!
Carlos: gosto da ideia da senha, assim a modos que uma maneira de entrarmos nos mundos mágicos...
"Longa Vida e outros iogurtes ao Teatro da Garagem."

Post de Campo de Afectos, de 18 de Julho de 2003






APONTAMENTOS 

Só acreditamos naqueles pensamentos que foram concebidos, não no cérebro mas em todo o corpo.
W. B. Yeats

Esta é a parte mais difícil do teatro: falar do teatro.
Pensei em virtuosismo e convenção exterior; e em verdade interior.
Quis que tudo fosse material, físico – como pedras. E ouvir o ruído da sua fricção. Calor. Energia.
Cores. E imagens moventes.
É difícil estar dos dois lados das palavras.
No sítio onde o teatro acontece há uma vida sem fim – ou que só deixa de ser quando a outra, maior, cessa.
Quis criar teatro – não um espectáculo.
É bom ser amigo e cúmplice da Sol. E da Rita. E do André. E da Sandra. E do Manel. E da João. E da Inês. E da Filipa. E da Sara. E da Raquel. E do Zé Alberto. E da Cátia.
Obrigado.
Continuo a gostar de incenso, de velas escarlates, de laranjas, de uma toalha quente para cobrir o corpo que esfria...

Texto a propósito do seu espectáculo Aquitanta, estreado a 14 de Fevereiro de 2003, em Lisboa, no Palco Oriental (peça publicada, com Prefácio de Manuel de Freitas, em Lisboa, Edição de Autor, 2003)






PEQUENO GLOSSÁRIO DE USOS INDEVIDOS 

(a propósito da escrita de Avesso)

Acção: Fragmentação e descontinuidade, acaso e repetição.
Actores: Os que incendeiam as palavras – o sentido.
Bastidores: “O que somos nós aqui encurralados nesta ante-câmara da fábrica de simulacros de vida?” “O que fazemos nós aqui antes de passar para o lado de fingir mundos?”
Identidade: Desvendar pedaços dos processos de desdobramento e transformação – o mais doloroso questionamento.
Metáfora: O mundo como. O palco como.
Mundo: Por vezes há excesso de mundo – e é preciso dizê-lo.
Palavra: A palavra não existe antes do sentido do mundo – mas só ela o pode dizer.
Personagens: Actores que representam actores que representam personagens – actores que são não-eles e não-não-eles.
Simulação: O lado avesso é também uma simulação.
Solidão: Sob a azáfama esconde-se uma tensa rede de silêncios e vozes por dizer – solidões que se encostam umas às outras.

Texto (não publicado) sobre a escrita da sua peça (inédita) Avesso.



HAMLET & OFÉLIA 

Conheço há muitos anos o Hamlet e a Ofélia. Estes ou outros. Sempre diferentes na sua fuga pelo mundo. Morrendo e ressuscitando sempre. A primeira vez que os encontrei foi em África. Bissau. Mercado a céu aberto do Bandim. Ele esgaravatava dos bolsos uma decrépita nota de franco para um quarto de uma Sagres escaldante. Ela à beira da estrada mijava sangue. E os seus olhos pediam a compaixão de uma morte breve. Mais tarde, Lisboa. Pensão Paraíso (“Banhos Quentes e Frios”). Ofereceram-me os seus corpos esvaziados em troca do que eu quisesse. Encontrei-os ainda no Kosovo. Klina. Brigada portuguesa. A guerra tirara um braço a Hamlet. A Ofélia a cor da pele. Nada tinham que servisse de moeda de troca. A última vez foi em Nova Iorque. Foram eles que comandaram a destruição das Twin Towers. Foi essa a história que me quiseram vender e que eu não comprei. Preferi ser eu a inventar-lhes uma outra vida. A troco de nada.



Texto (não publicado) de apresentação da sua peça (não publicada) Hamlet & Ofélia - encenada por Joana Fartaria, para a Companhia de Teatro de Almada, com Silvia Barbeiro e Pedro Carmo, estreada em 16 de Abril de 2003.


“ESTE ESPECTÁCULO”... 

A criação deste “espectáculo” – talvez “encontro” fosse um termo mais ajustado – mandou às urtigas teorias e metodologias teatrais mais ou menos “adquiridas” e “legitimadas”. Mas não é isto que interessa agora aprofundar – seria procurar a teoria por portas-travessas.
O que procuro agora é fugir a um discurso que a posteriori mais não faz que reduzir, imobilizar a criação – aquilo que por “natureza” não se diz. Mas, a contrario, é muito difícil resistir ao impulso de partilhar com aqueles que agora nos vêem e ouvem a alegria de sabermos que criámos algo feliz. E digo feliz sem medo ou vergonha de o dizer porque não sei como exprimir o que senti ao longo do tempo de trabalho – e o que ainda sinto quando escrevo estas linhas (a cerca de duas semanas da “estreia”). E é isto: creio que há certos momentos na vida de cada um de nós que nos marcam de uma forma muito especial: pessoalmente, a melhor maneira que tenho de falar desses momentos é dizer que eles se assemelham a uma transformação do meu ser (o que quer que tal coisa seja); quando, mesmo que por uns poucos momentos, me sinto eu e mais qualquer coisa que me é acrescentada, qualquer coisa que o meu corpo vive e absorve, uma marca que fica fundo nele. Exemplos? Falo-vos apenas do amor e da morte - e cada um saberá do que falo...
Com a Cátia, a Joana e a Solange vivi momentos mágicos de transformação, algo que me acrescentou (e julgo saber que o sentimento é recíproco): mas estas pobres palavras mais não podem que tocar ao de leve o sentimento. Isto afinal é o teatro. Pois é: gatinhámos juntos na procura de perceber os corpos e as palavras, na tentativa de os conseguir juntar num amor pequeno – mas feliz, já o disse. Acreditem.
Talvez os que agora lêem estas palavras estejam à espera que fale sobre o “conteúdo” do “espectáculo”: não sei, desculpem, desculpem, é que é tão bom descobrir que não há nada para dizer de uma coisa quando ela simplesmente acontece, quando simplesmente nos toca. Quando é.
Tenho ainda de confessar-vos que não sei falar do meu contentamento em trabalhar com actrizes tão inteligentes e sensíveis...
E ainda poderia falar do cinema...
As peles abrem-se e penetramos nelas: chega?

Texto (não publicado) sobre o espectáculo Restos. Interiores, texto e encenação do autor, estreado em Palmela, no FIAR, em de Julho de 2002. O texto da peça está publicado em Lisboa, Edição de Autor, 2002






SERES SOLITÁRIOS  

Sobre o espectáculo/performance SERES SOLITÁRIOS, concepção e direcção de Lúcia Sigalho, pela COMPANHIA DE TEATRO SENRURROUND. Espectáculo composto por 5 solos, em 5 espaços diferentes, com 1 espectador de cada vez em cada solo. Espaços localizados entre a rua D. Luís I e a Praça com o mesmo nome, em Lisboa. Performances presenciadas entre Domingo 4 e Terça-Feira 6 de Julho de 1999. Escrito entre 4 e 12 de Julho. Ligeiras alterações introduzidas em 23 de Setembro de 1999.

Palavras-chave
Performance. Poesia. Contaminação. Conhecimento. Exercício. Palavras convertidas em acto. Escrita performativa.

DOMINGO 4 DE JULHO

#1: Um corredor do nº 5 do Boqueirão do Duro, 22 H. (Performer: Carla Bolito)



À porta da rua um colaborador da Companhia entrega-me um telemóvel e diz-me para carregar no botão verde quando o ouvir tocar. Subo um escada íngreme na penumbra. Abro uma porta para um longo corredor, escuridão também. Há uma cadeira junto à porta e sento-me nela, de telemóvel na mão. Na outra extremidade do corredor percebo a silhueta de uma mulher. Diz coisas entrecortadas, incompreensíveis. Com o seu telemóvel liga para o meu. Atendo. Tenta comunicar comigo com palavras breves, silêncios de espera. Não colaboro, hesitante sobre as regras do jogo que ela parece querer jogar. Começa lentamente a caminhar na minha direcção. Continua a tentar comunicar. Diz-me que vem de olhos fechados e pede-me para a ajudar, faz-me perceber que está com dificuldades (que tem medo?). Com a voz encaminho-a até mim. Pergunta coisas aparentemente banais, “donde vens?”. Agarra-me na mão e leva-a ao seu rosto, ombros, ventre. Afasta-se. Pega numa lâmpada fluorescente sem fios, acesa. Brinca com ela (não retenho o que me diz, talvez não seja importante). Deixa a lâmpada junto de mim. Antes, pediu-me para falar pelo telemóvel e depois colocou o seu junto ao meu ouvido para eu escutar a minha voz, comunicação em sentido único. Foge. Volta para o seu local de início. Por vezes corre. Pega noutra lâmpada, idêntica à primeira. Suponho que a minha lâmpada tem um botão, é verdade, acendo a lâmpada e depois apago-a. Ela responde. Jogamos ao apaga-acende. Vem até mim. Propõe-me que joguemos ao jogo das palavras – um diz uma palavra e o outro diz logo outra sem perder tempo a pensar. Jogamos. Às vezes ri-se (parece sempre nervosa, tensa, desde o princípio). Estamos nisto uns minutos. Afasta-se. Fica de repente estranha (deprimida?). Já quase no seu extremo do corredor, joga com força o corpo entre as paredes. Repete algumas das minhas últimas palavras: “ambrósia”, “solidão”… Diz-me: “O jogo acabou, vai-te embora.” (com alguma rispidez, quase com violência).

Deixo-me levar por toda esta estranheza. Procuro não pensar muito no que (me) está a acontecer. Talvez seja esta a melhor disposição para “estar” - mais do que ver - neste espectáculo, nestas situações; a solidão desta performer/mulher senti-a mais por antes saber, ou melhor, adivinhar, que a Lúcia ia tratar, mais uma vez, da solidão & afins, do que propriamente pela sua performance.

#2: Um apartamento no nº 26 da rua Cais do Tojo, 23 H. (Performer: Ângela Pinto)



Uma colaboradora na rua pergunta-me se vou ver o espectáculo. Digo que sim. Pede-me o bilhete. Dou-lho. Diz-me para subir as escadas e ter cuidado com os degraus. O apartamento é o do lado direito ao cimo do primeiro lance de escadas. Subo. Bato à porta. Uma jovem abre. Começa a falar como se continuasse um diálogo (ou, talvez, vejo depois, um monólogo). Estendo a mão (a dela parecia estar à espera disso) mas ela não corresponde. Deixa-me entrar, fecha a porta e continua a falar. Parece falar de um encontro amoroso. Falo com ela – influenciado pela performance anterior – mas ela não responde, parece não (me) ouvir, fala aparentemente comigo, outras vezes com alguém apenas imaginado, de outras vezes com alguém ali presente mas que não sou eu. “Não o conheces?”, “Tens um sinal na cara.” (há-de repetir esta frase duas ou três vezes), “Queres chá?”, “Senta-se no outro lado.” (de um sofá vermelho), “Gostas de dançar?”, “Gostas desta música?” O apartamento é velho mas está pintado, de branco – como se fosse um palco, ou seja, sem grandes cuidados, para ser visto ao longe. Uma saleta, onde fico até ao fim, com um televisor ligado onde passa um filme-vídeo, a preto e branco, com, parece, imagens do apartamento em ângulos estranhos: o dito sofá, uma pequena mesa perto dele, um armário com alguns objectos, uma mesa (?) junto à entrada. Noutra sala menor, à minha esquerda, com um pequeno móvel onde está uma HI-FI e um porta-CDs alto e esguio. Há mais duas pequenas divisões que nunca vejo – talvez uma seja o quarto que ela diz usar, e outra a cozinha. Serve-me um chá. Não bebe. Mostra-me fotografias onde nunca está (a maioria delas são Polaroides tiradas, creio, a outros espectadores, reconheci um amigo). A insegurança de uma relação que falha, falhou, há-de falhar. Tira-me uma Polaroide. Coloca-a a revelar presa ao rebordo do televisor em cima de uma mesa baixa. A pouco e pouco vou vendo o meu rosto a definir-se. Nunca pára de falar. Desliga o quadro eléctrico. Liga-o de novo. O vídeo não voltará a funcionar. “Ele virá, não virá, conheço-o, não o conheço.” Traz um bolo de aniversário com uma vela acesa. Toca-me na mão e no rosto. Diz-me para apagar a vela. Apago a vela. Ela diz: “Hoje não me apetece fazer anos, fica para outro dia.” Está sempre muito agitada e sorridente, nervosa, nervosamente sorridente e agitada. Abre a porta da rua e indica-me que saia. Encaminho-me para a porta para sair, passo por ela e ela continua como se não se tivesse passado nada naqueles minutos, como se eu não estivesse ali - nem ela.

Cansou-me um pouco este exercício, talvez por ter estado todo o tempo entre o comunicar e o não comunicar, entre o estar ali para alguma coisa e não valer a pena estar ali; mas sei que senti algo parecido com o desespero de uma situação em que não se vai a algum lado, porque não vale a pena – mesmo que se pudesse ir, pois é, o saber que isso é terrível e ainda é mais terrível com o esforço que uma pessoa faz – ela – para ser normal, sorrir, fazer coisas mesmo que seja subir para uma mesa, servir um chá, fazer anos - agora ou noutro dia qualquer -, ter uma mancha na cara, sair de casa, voltar, recomeçar tudo…

#3: Na torre do relógio do edifício dos Correios no nº 30 na Praça D. Luís I, 24 H. (Performer: Afonso de Melo)



Já sei que devo premir a campainha da porta – avisaram-me quando comprei os bilhetes – e também que devo ter comigo o BI. O “segurança” dos Correios abre-me a porta e toma nota dos dados de identidade “civil”. Diz-me para esperar um pouco. Espero. Daí a um minuto ou dois sinto o elevador a descer. Uma colaboradora (nunca é a mesma) dá-me as boas-noites e diz-me para esperar (mais) um pouco. Volta ao elevador. Regressa pouco depois e subo com ela até ao 4º andar, creio. Avisa-me que devo subir uma escada de ferro até ao cimo, com cuidado, há quem a desça de costas. Não percebo muito bem o que me diz. Enfim, é uma escada com corrimão, como uma escada móvel. Um pouco inclinada, realmente. Do cimo da torre vê-se um panorama bonito. Estou junto a um pequeno varandim, está frio, volto para dentro. Ouço uma voz de homem, deve ser o performer, a gritar-me para que desça. Faço-o. É a sala do relógio propriamente dita e é lá que ele está, de pé, junto ao relógio (do avesso). A sala não deve ter mais do que 3,5x3,5 metros. Uma cadeira de ferro ao centro. Ele fica quase sempre junto da caixa circular do relógio, serve-lhe de assento. Levanta-se, anda pouco, o espaço também não dá para muito mais, volta sempre ao mesmo sítio, o do relógio. Confessa que sabe que há uma grande expectativa nesta situação, porque o espectador está ali privilegiadamente a sós com ele, e ainda por cima pagou bilhete. Não finge que tem um texto decorado, diz-me, e que está preparado para aceitar e responder a pequenas minhas mas que ficaria em pânico todo o tempo se eu, por exemplo, começasse a espirrar. Pergunta-me: “Com quantas pessoas já estiveste hoje?” e eu respondo: “Umas quantas.”, e ele: “Mas com quantas estiveste realmente?” (acentua o realmente) e eu: “Não sei.” Fala de encontros e desencontros, das palavras, das paixões (a certa altura pega-me na mão). Diz-me: “Preciso de te dizer uma coisa lá em cima.” Depois, ficamos em pé, muito próximos, quase a tocarem-se os rostos, olhos nos olhos. Fala-me de paixão? Fico por momentos sem ouvir, não sei, ou se é agora que não me lembro. Perturbação. Leva-me para junto do pequeno varandim ao ar livre. Dá-me uns headphones, coloco-os. Põe o aparelho reprodutor a funcionar. Ouço. Ele sai, desce. Ouço um discurso, dele, idêntico, fala de suicídio. Lá me baixo, num grande terraço, aproxima-se do bordo, sobe, parece que se vai atirar dali para a rua. A coisa parece real. Acaba a gravação. No terraço começa a ouvir-se uma música, uma canção romântica francesa. Percebo que devo descer. Assim faço. Não volto a vê-lo.

A minha memória, passadas cerca de quatro horas sobre a primeira performance, filtrou estas coisas. Percebo agora que me esqueço de muitas delas, sobretudo das palavras. Mas lembro-me de quase tudo o que vi, ou o que me parece importante neste momento, no acto da escrita, achar que vi.
Amanhã – agora estou cansado, é muito tarde – algumas coisas em que pensar:
A relação do performer com o espectador (diria comparsa): estão (a Lúcia, o grupo) a quebrar um pacto, a ser corajosos ou desleais: antes não suscitaram o acordo de cada um, não é? Quando se chega a este ponto só se pode ter um determinado tipo de público, um público talvez de iguais, pelo menos um público que, sem ninguém lhe perguntar nada antes, esteja disponível para ser cúmplice. Mas, mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, pode-se pedir, antes, esta cumplicidade? Porque, se a pedirem, “estragam” o jogo? Mas, por outro lado, não gostariam os performers que os espectadores se dessem mais? O que acontece se um espectador desatar a falar com um dos deles? A querer tocar-lhe? A ter sexo com ele? Estão preparados para isso? Ou a coisa acaba ali se isso chegar a acontecer? São perguntas simplistas mas que deverão ter respostas algo complexas… No limite não poderia haver espectáculo/performance, mas conversas a dois, despoletadas pelo performer que deixaria de o ser, então. Está ou não a falar-se de uma nova forma de comunhão, de cumplicidade? A Carla Bolito esteve talvez mais perto desta solução. Contudo, pareceu-me com dificuldades. É solitária e quer (?) falar da sua solidão, mas isso já se sabia antes pelo título do espectáculo e pela palavras inscritas no cartaz: “Nós também não nos encontramos, pois não?”


TERÇA-FEIRA 6 DE JULHO

#4: No Armazém de Madeiras Bernardino & Filhos, no nº 41 da rua D. Luís I, 22.30 H. (Performer: Fátima Belo)



À porta está uma colaboradora que não é nenhuma das que já conheço. Diz-me que a função começa dentro de três minutos. Pouco tempo depois abre-me o portão e fecha-o mal entro. Penumbra. Duas ou três luzes num espaço enorme. Alguns montes de madeira – para construção civil. Sujidade – deve ter imenso pó, ratos, coisas assim. Frio. Chão de terra batida ainda com pedaços de um pavimento de cimento. Paredes parcialmente destruídas em alguns locais. Ouve-se o ruído da rua, sobretudo de carros eléctricos. Caminho até perto de uma das luzes. De outro local sai uma performer vestida de branco. Não fala, não me fala. Dá uns passos, pega numa cadeira de ferro, leva-me até perto do portão por onde entrei. Faz-me sinal para me sentar e eu faço-o. Volta para trás. A uns vinte ou trinta metros de mim faz uns gestos, quase como se dançasse. Faz movimentos no chão (desnecessários?). Vai buscar uma pequena mesa de madeira. Corre com ela para mim. Quase que me derruba. Coloca-a bem encostada a mim. Vai buscar uma cadeira e senta-se à mesa comigo, de frente para mim. Durante uns momentos toca-me: no rosto, no pescoço, no peito, nos ombros. Com uma força controlada: como se quisesse sentir os meus batimentos, adivinhar o que está dentro de mim, sentir o que afinal não está lá. “Estou só e tu também estás só”, diz-me. Sempre a olhar para mim. Por vezes, as minhas mãos nas mãos dela, outras vezes leva as minhas mãos ao seu rosto. “No Metro as pessoas encostam-se umas às outras com ódio.” Não fala muito. O contacto é mais físico, passamos quase todo o tempo a tocar-nos, melhor dizendo, ela toca-me e toca-se com as minhas mãos. “Não estamos aqui.” “Estamos sós.” Levantamo-nos. Ensaia comigo um breve passo de dança. Logo deixa perceber que o (des)encontro terminou. Encaminho-me para a porta. Saio.

Não está frio. Desta vez fiquei triste, com pena por as coisas serem assim, a gente sabe que são assim mas não quer saber, acreditar.

#5: No Quarto 303 da Pensão Flor da Ribeira, no nº 1 da rua D. Luís I, 23.30 H. (Performer: Lúcia Sigalho)

Antes de entrar penso, nem sei por quê, que se trata de uma “casa de passe”. Já sei, foi alguém que mo disse, no primeiro dia. Desta vez não há colaboradora a guiar-me. Entro. Escuro, sujidade, podridão. Não, aqui não vive ninguém, queres ver que não é aqui? Chego ao primeiro andar. Procuro o quarto 303, pois é. Gritos, choros, comida a fazer-se como num acampamento de refugiados de guerra. Estes fogem de outras guerras. O termo usado para isto parece que é “condições infra-humanas”. Enganei-me. A prostituição aqui, a existir, é um mal menor. Percorro esta desumanidade a medo. Espreito num ou noutro quarto. Desisto. Estou quase a desistir. Mas subo ao segundo andar. A meio do patamar há uma espécie de recepção (ou foi logo no primeiro?). Duas mulheres, sem destoar do conjunto. Pergunto se há uma actriz, teatro, espectáculo? Uma responde, enfastiada, “que é lá para cima”.
Atrás de mim ouço a que me respondeu dizer à outra que “lá em cima está uma tipa qualquer, maluca, a fazer teatro ou lá o que é aquilo”. Ao fim de uns quantos enganos e de uma pequena perseguição de um inquilino que gostaria de me acompanhar na busca, encontro o 303. Bato. Nada. Bato segunda vez. Nada de novo. Julgo ouvir uma música que vem de lá de dentro. Empurro a porta e entro. Em frente, um compartimento parecido com uma casa de banho, iluminada. Para a direita, uma sala mobilada. Uma cama com objectos espalhados, um caderno, coisas rasgadas, uma edição inglesa das obras completas de Shakespeare, um pequeno armário – sujidade, abandono. Uma mesa no centro da sala com comida, cigarros, cinzeiro, água, um reprodutor de som. A Lúcia está em frente à pequena varanda, vestida de negro, a rigor, demodée, o vestido a tapar-lhe o pescoço até à curva do queixo, voltada para quem entra na sala, a luz da rua a recortar-lhe a silhueta. Está estranhamente bonita. Tem uma expressão cansada e triste. Estou em pé a uns dois metros dela. Olhamo-nos por uns momentos. Vem até perto de mim, um momento, e depois até junto da cama e da mesa – é tudo muito pequeno, tudo muito próximo. Faz-me sinal para que me sente. Oferece-me um prato com comida chinesa. Declino com gentileza a oferta. Oferece-me água num copo. Bebo um gole. Senta-se na borda da cama. Põe algodão nos ouvidos, fita adesiva transparente a tapar a boca, algodão branco sobre os olhos com a mesma fita. Do aparelho sai uma gravação (a voz é a dela, límpida): uma longa fala de uma mulher normal, que faz tudo normalmente, a quem tudo o que acontece é normal, que vive e trabalha na normalidade. Ouve-se: “Aos 17 anos suicidei-me, como é normal.” Tudo é normal para ela, mesmo a sua morte. Termina a confissão da mulher normal. Enquanto dura a gravação, sobe para a cama, pisa tudo o que lá está, rebola-se lentamente, parece que não controla bem os movimentos, soergue-se, encosta-se à parede, acaba por descer pelo lado contrário àquele por onde começou. Depois, escreve, de olhos tapados, num bloco escolar A4: “Queres contar-me uma história?” Eu escrevo: “Era uma vez uma mulher normal que viu a sua imagem reflectida no espelho do televisor quando estava a ver um programa de culinária. Depois, saiu para a rua e deixou-se molhar pela água da chuva. Voltou para casa e começou a chorar sem saber porquê.” A Lúcia parece que consegue ler mesmo com os olhos tapados. Escreve: “Não gostavas que eu fizesse uma peça?”. E eu: “Não, gosto que faças o que gostas de fazer.” E ela insiste: “Sim ou não?”, escreve. “Não”, escrevo-lhe. Enquanto dura este nosso diálogo escrito parece que começa a chorar, sem ruído. Então, agarra na minha mão esquerda com muita força. Levanta-se e caminha para a pequena varanda, sempre a agarrar a minha mão. Na varanda tira com a mão livre os adesivos do rosto. Olha para mim com um sorriso, as lágrimas no rosto, e diz: “Obrigado!”, com um ligeiro aperto de mão de despedida na mão que ainda tem entre as suas. Um estremecimento. Eu digo-lhe também com o sorriso possível: “Obrigado!”.

O que antes deste solo me inquietava e que não sabia muito bem como explicitar deixa agora de parecer importante, deixo-me arrastar para um nível diferente de coisas. Não sei explicar muito bem o que é mas o que é está lá, naquele quarto com uma senhora vestida de negro que já foi do Shakespeare mas agora come comida chinesa numa pensão lúgubre, normalmente, assim, e que gosta de histórias e de peças de teatro, mas afinal não gosta de nada disto e como não sabe nada, nem quem é que ali está, comove-se facilmente e agradece, não sei realmente o que é e o que lá está mas seja o que for é isso que me deixa perturbado ao ponto de achar que afinal ainda há uma réstia de esperança, nem que seja escondida sob os escombros de tudo o que somos e que não gostamos de ser. É tarde, outra vez. Valerá a pena amanhã voltar a pensar nisto tudo? Afinal, pensar é aqui a única coisa que agora não faz falta…

Dia 11. Aliás, madrugada de 12.

Cinco, seis dias passados desde a última performance e do que então escrevi. Passo as coisas para o computador. Resisto a retocar o que está escrito. Uma coisa ou outra, poucas, por uma questão de clareza. Ver um pouco mais claro em mim. É tarde. É sempre tarde? Adiamentos. Passo o tempo nisto. Agora não pode ser apenas “mais uma vez”. Aproximo-me destes materiais. Dos corpos e das palavras dos artistas que as “opiniões dominantes” irão silenciar - não duvidem.
Penso nas palavras. Gosto que elas resistam. Que conquistem valor (é tão fácil desbaratá-las). As palavras dos actores não se cultivam em ambientes controlados e assépticos. Palavras exactas. Trocam-se por um cumprimento a medo, por um sorriso apenas esboçado, por um grito imaginado, por um aperto no coração.
A actriz perde todas as suas palavras. Tinha excesso delas. Os sentimentos traficados. Percorre agora labirintos inundados de palavras mas sem palavras para a guiar. Posso ajudá-la?
A actriz é despida de palavras e entra numa montanha. Demanda errática das palavras que se encaixem nos seus silêncios e nos seus medos. É difícil caminhar por entre palavras desconhecidas. Não há imunidade possível.
As palavras guardadas numa caixa agitam a actriz. No fim apenas resta uma presença muda de um ser que se encontra por acaso.
Júbilo.
Uma voz diz-me que pode ser perturbada por um silêncio em estilhaços.
Um corpo procura dentro de si as vozes através das mãos ligadas a outras mãos.
Subterrâneo.
Um pó muito leve desprende-se da palavra acabada de nascer.
Agradecimento.

Para o fim
fica a vontade de falar de outras coisas: dos corpos, por exemplo. Destes corpos encarcerados. Ou ainda: olhar para este exercício escrito sobre a performance para ir também desvelando como se faz a performance da escrita: talvez uma escrita dupla e dúplice: escreve-se no território de outros seres, um processo de traição, de enamoramento, de sedução: a escrita que se faz outra pela performance e que através de si faz outro acontecimento. A palavra a converter-se em acto?


Publicado na revista Belém [CCB] (dir. Alexandre Melo), nº 4, Abril de 2002: 56-65


A ÁRVORE DA INTOLERÂNCIA 

Nas coisas da escrita para teatro há um lugar-comum que mesmo assim não deixa de ser verdadeiro: quando o autor dá o texto por terminado ele torna-se pertença de outros: os criadores do espectáculo e o seu público. Por isso, quando me pediram para escrever sobre a peça agora transformada em espectáculo, olhei-a com o mesmo sentimento, misto de curiosidade e estranheza, com que aprecio obras alheias. Quem são e o que fazem estas personagens? E aquilo que fazem, fazem-no porquê? Talvez influenciado pelos sombrios tempos de hoje, julgo ter visto no Pai, na Mãe e no Filho desta peça, na sua maneira de lidar com o inesperado de uma falha – a da personagem omnipresente da Filha – sintomas de intolerância do indivíduo, atitudes de fechamento que não admitem a criação de patamares de compreensão do outro, do diferente. Meio caminho andado para ser suporte e alibi de intolerâncias maiores. Julgo ter visto, também, sinais de esperança na situação absurda destas personagens não menos absurdas. Afinal, mesmo o desespero de um suicídio é uma forma de liberdade – quando nada mais resta?
No meio de tudo isto, que não é lá muito risonho, não deixei de rir. E é bom poder fazê-lo, não deixa criar pedra nos rins e oxigena os neurónios. E rir de nós próprios é o primeiro passo para não agredirmos os outros.
Terminada a leitura da peça, retenho a imagem de uma árvore de Natal que não chegou a ser e não consigo afastar uma sensação de desconforto...
Terá sido mesmo esta a peça que escrevi?

Publicado no programa do espectáculo Ficava tão bem naquele Canto da Sala, com texto seu e encenação de João Ricardo, estreado em Lisboa, no dia 3 de janeiro de 2002, no Teatro Há.de.Ver



O SACO DE AREIA 

Era uma vez uma Menina que fugiu de casa dos seus Pais. Fugiu e levou com ela um pequeno saco cheio de areia. Caminhou caminhou e chegou a um País desconhecido. Era o País dos Homenzinhos. E os Homenzinhos disseram à Menina que trocavam cada grão de areia do seu saco por mil imagens mil. E a Menina disse que não. Oh como ficamos tristes disseram os Homenzinhos e o que vais fazer perguntaram. Vou fazer uma cova na areia e enterrar lá o meu saco de areia disse a Menina. E os Homenzinhos choraram e perguntaram e depois. E depois sento-me e fico à espera que cresçam palavras disse a Menina e não chorou.

Publicado no programa do espectáculo Vertigem, com texto seu, produção do Teatro o bando, encenação de João Brites, estreado em Vale de Barris, Palmeia, em 15 de Novembro de 2001





AS PALAVRAS... 

As palavras procuram explicações nas palavras nas palavras das explicações. Ponto. As palavras rodopiam rodopiam as palavras rodopiam embrulhadas em corpos ao alto. Círculo. Um saco de areia enterrado no deserto. Elipse. As bombas arrasam as ideias. Fim. Procurar as vozes no lado oculto da luz a luz das vozes na indecisão dos silêncios. Avesso. Restam os actores heróis frágeis. Vertigem.

Texto não editado, escrito em 1 de Novembro de 2001 (a propósito da adaptação do seu texto Avesso para o espectáculo Vertigem, produção do Teatro o bando, encenação de João Brites, estreado em Vale de Barris, Palmela, em 15 de Novembro de 2001


TERRA SEM MAL 

O nosso Mundo é um grande espaço na Terra: o Mundo e a Casa. Um Mundo antigo, marcado pela errância do Tempo. Neste Mundo não há Noite, a Luz é forte e imensa.
Desejo de Lua.
Sofremos com o Frio, com o Calor, com as suas ausências ou os seus excessos.
Desejo de Harmonia.
Temos Caminhos que não sabemos percorrer e voltamos sempre a este Mundo.
Desejo de Paz.
Temos Sede, temos Fome.
Desejo de Água e de Frutos maduros.
Somos Vozes e contamos Histórias.
Somos poucos e sonhamos com uma Terra sem Mal.

Texto de abertura da sua peça Os Nomes que Faltam, in Dramaturgias Emergentes 2, Porto/Lisboa, Cadernos Dramat, Nº 6, Teatro Nacional São João / Cotovia, 2001: 69



Produção do GATUÉ, encenação de Tiago de Faria

FALHA 

Um nome que falha. Um gesto. Um olhar. Uma palavra. Uma memória.
Procuramos nas cidades imaginadas. Labirintos. Terra. Artérias. Corpos. Químicas. Derivas. Despojos. Demência.
Sonhámos as cores que não podíamos ver.
Retirámos dos olhos a carne para os nossos pensamentos.
Os pássaros navegaram nas nossas artérias, depois furaram-nas cuspindo nozes e avelãs.
O tempo empurrou as memórias para fora do nosso cérebro e com elas as palavras.
Procuramos sítios para pessoas falarem, apenas. Para pessoas.
Uma Terra sem mal.
Um Texto que não há.

Publicado no caderno de textos de apoio do espectáculo A Mortos e Vivos – Os Nomes que Faltam, texto seu e encenação de Joana Fartaria, estreado em 15 de Fevereiro de 2001, em Lisboa, no café-restaurante Divina Comida



OS NÚMEROS DA HISTÓRIA 

Os Quadros que se seguem [aqui não reproduzidos] traduzem quantitativamente a actividade de produção de espectáculos do CCE/CENDREV, na sua componente interna e na sua recepção pública. Esta tradução não esconde, antes clarifica, a riqueza e diversidade do percurso. Desafia leituras atentas que conjuguem os dados quantificados da actividade teatral com as intenções e circunstâncias – artísticas, sociais e outras – que delinearam, construíram e mantêm o projecto. Ajudam, estes dados, a que seja menor o risco de simplificações e de análises redutoras baseadas em meras suposições, desconhecimentos de causa ou até, porque não?, em interesses alheios ao franco desenvolvimento do teatro, particularmente aquele que, como o desta companhia, se orienta, também, por pressupostos artísticos social e politicamente intervenientes, mormente na sua vertente descentralizadora.
Desdobra-se este trabalho em “ESPECTÁCULOS E ESPECTADORES”, “AUTORES E DRAMATURGIAS”, “ACTORES E ELENCOS”, “ENCENADORES” e “CENÓGRAFOS E FIGURINISTAS”. Sempre que se considera relevante, autonomizam-se aspectos particulares da produção da Companhia (os Bonecos de Santo Aleixo, a Unidade Infância e a Escola de Formação Teatral),
Impõem-se ainda alguns esclarecimentos, em especial sobre algumas discrepâncias entre os dados aqui apresentados e os que vieram a público no nosso artigo da revista Adágio sobre os 25 anos do CCE/CENDREV (Nº 26, Fevereiro-Maio de 2000, pgs. 24-35): estava-se em fase de consolidação da informação disponível e não foi possível apresentar dados absolutamente correctos (como ainda o não é de todo agora). Hoje, o nível de rigor aumentou consideravelmente, daí as discrepâncias. Mesmo assim, em alguns dos espectáculos os dados referentes a audiências foram ainda obtidos por estimativa, questão que se prende sobretudo com as normas de apresentação dos resultados às diferentes tutelas governamentais da área da Cultura (DGAC, SEC, MC…): como se sabe, estas normas foram sendo alteradas ao longo dos anos, tendo obrigado grupos e companhias também a diferentes formas de apresentação (anos civis “cortados” em períodos consoante as “temporadas teatrais”, critérios diferentes de ano para ano, etc.). Por outro lado, a precariedade com que o teatro tem vivido em Portugal não permitiu terem os grupos, como todos desejariam, sectores de gestão e administração profissionalizados de forma a não obrigar os criadores a somarem estas tarefas às suas tarefas artísticas – com prejuízo de umas e de outras…
O acesso recente a novas fontes permitiu igualmente afinar o tratamento sobre os conteúdos dos espectáculos, nomeadamente no que se refere a actores, textos, encenadores e cenógrafos/figurinistas, assuntos cujo tratamento ficou aquém das expectativas no citado artigo da Adágio.
No que respeita ao trabalho agora apresentado, importa referir que pelas razões atrás apontadas não é possível mostrar separadamente as audiências registadas por produção e por ano civil: assim, os dados anuais de cada espectáculo dizem respeito ao ano da respectiva estreia, mesmo que uma dada produção tenha realizado sessões em anos subsequentes. Optámos por este critério de uniformidade para evitar leituras ainda mais distorcidas.
Apresentada agora pela primeira vez a produção quantificada dos espectáculos do CCE/CENDREV deste quarto de século, esperamos também que este trabalho inédito possa ser melhorado, por exemplo com o seu cotejamento com os dados oficiais (se é que os há…) e, noutra perspectiva, com os de outras companhias com idêntico tempo de existência.
Os destaques de leitura e os comentários que fazemos de seguida têm apenas como objectivo iniciar a análise, sem pretender esgotar, portanto, os pontos de vista ou o seu aprofundamento.

ESPECTÁCULOS E ESPECTADORES
Em Janeiro de 1975 o então Centro Cultural de Évora apresentou ao público a sua primeira produção: A Noite do 28 de Setembro (texto e encenação de Richard Demarcy). Com este espectáculo realizou 26 sessões para 10.088 espectadores, com uma audiência média por sessão de 388 espectadores. Ao fim de 26 anos consecutivos completos de actividade (de Janeiro de 1975 a Dezembro de 2000) o CCE/CENDREV somou, com esta inaugural, 134 produções, mostradas em 3.651 sessões, com uma audiência média por sessão de 150,2 espectadores, atingindo mais de meio milhão de espectadores (548.527). Se juntarmos à produção regular da Companhia as sessões realizadas com os Bonecos de Santo Aleixo, teremos 4.080 sessões, com uma audiência média por sessão de 147,2 espectadores e uma audiência cifrada em 600.624 espectadores.
A actividade de dinamização teatral, em particular no Alentejo, reflecte-se nos números atingidos com as sessões realizadas fora de Évora e do Teatro Garcia de Rezende: 289.206 espectadores (mais de 50% do total), em 1.620 sessões (para 2.031 em Évora), com uma audiência média por sessão de 178,5 espectadores (superior à de Évora que foi de 127,7) [...]
[...] destaques de aspectos particulares da actividade [...] nos 15 anos do CCE (1975-1989) montaram-se 70 espectáculos, sendo 48 da Companhia para um público indiferenciado, 12 da Unidade Infância e 10 da Escola de Formação Teatral (exercícios públicos). Nos 11 anos do período posterior (1990-2000), em que a companhia surge com a denominação CENDREV, produziram-se 64 espectáculos: 46 da Companhia, 10 da Unidade Infância e 8 da Escola de Formação Teatral. Das 134 produções, 94 são da Companhia, 22 da Unidade Infância e 18 da Escola. Comparando a actividade nos dois períodos, verifica-se que o índice de aproveitamento produtivo em função do seu tempo relativo de existência é maior no CENDREV. Por outro lado, é no período CCE que se regista a maior audiência (382.262 contra 152.965), bem como maior número de sessões (2.112 contra 1.431) e maior média de espectadores por sessão (181 contra 106,9). A tendência é a mesma no que respeita às prestações em Évora e em digressão, sendo de destacar que só no período 1975-1989 se atinge uma audiência em digressão de 211.403 espectadores, cerca de 39% do total global do CCE/CENDREV.
Percebe-se facilmente que o CCE/CENDREV acompanha a tendência generalizada no teatro português de decréscimo de audiências globais e de frequências médias por sessão. Na verdade, passa-se de quase cinquenta e um mil espectadores em 1975 para pouco mais de oito mil e quinhentos em 2000 (dados até 11 de Dezembro de 2000). Em termos médios anuais, o período 1975-1989 regista 25.484 espectadores e o período seguinte, 1990-2000, 15.115 (a média dos dois períodos é de 21.097). A mesma tendência acompanha as audiências médias por sessão (CCE: 181, CENDREV: 108, CCE+CENDREV: 150,2).
Já o mesmo não se passa com as capacidades de produção e de apresentação pública de espectáculos. Assim, vê-se que no período CENDREV aumenta o número médio de produções anuais, isto é, passa-se de 4,7 para 5,8, facto tanto mais significativo quando é no período mais recente que se verifica o fim, em 1996, da Unidade Infância, responsável por uma parte importante de produções do CCE/CENDREV – uma produção e quase cinquenta sessões por ano (entre 1976 e 1996). No mesmo sentido, observe-se que a média de sessões por ano se mantém em níveis idênticos: 140,8 para o CCE e 140 para o CENDREV.
Os espectáculos da Escola de Formação Teatral não têm um peso particular no cômputo geral da actividade pública do CCE/CENDREV – nem é essa, aliás, a sua vocação. Contudo, registe-se que a sua oferta rondou quase uma produção por ano (0,82) no período 1976-1997 (depois desta data as prestações de actores e técnicos da Escola têm sido directamente realizadas nos espectáculos da Companhia).
Um ano de actividade com 15.000 ou mais espectadores pode considerar-se um ano de excepção no panorama do teatro em Portugal (equivale, por exemplo, a 100 sessões com 150 espectadores cada, ou a 150 sessões multiplicadas por 100 espectadores cada…). O CCE/CENDREV consegue fazê-lo em 16 anos: 5 na década de setenta, 7 na de oitenta e 4 na de noventa [...]. Na mesma linha, registe-se o facto de em 10 anos se ter atingido um total de sessões igual ou superior a 150 [...]; ou de 33 diferentes produções atingirem uma audiência média por sessão igual ou superior a 150 espectadores [...]. Para a história fica também o facto de ser um espectáculo para a infância, Kikerikiste, de Paul Maar, o que atinge maior audiência (24.976 espectadores), dentre outros 7 que atingem um total de espectadores igual ou superior a 10.000 [...]. E também de ser um clássico português e quinhentista o mais representado, Auto da Índia, de Gil Vicente, com 107 sessões, acompanhado de outros 5 que igualam ou ultrapassam a barreira das 75 sessões [...].

AUTORES E DRAMATURGIAS
O CCE/CENDREV produziu 134 diferentes espectáculos com textos de 86 autores [...]. As participações com níveis mais significativos são com textos portugueses (37, representando 27,6%), alemães (28, representando 20,9%) e franceses (25, representando 18,7%) [...]. Daqui pode destacar-se, então, o facto das dramaturgias escolhidas pelo CCE/CENDREV privilegiarem o continente europeu, onde, para além de Portugal, se dá destaque às fortes dramaturgias alemã e francesa.
No caso de Portugal [...], Gil Vicente é o autor mais representado. [...] pode [também] observar-se que Bertolt Brecht se destaca na área alemã e os autores franceses, e outros, não suplantam o italiano Goldoni que é o terceiro autor mais representado, à frente de Garrett, Strindberg, Marivaux, Vinaver, Molière e Shakespeare, por esta ordem. A Itália com 7,5% e a Inglaterra com 5,2% seguem-se em ordem de importância neste ranking de dramaturgias representadas [...].
[...] origem das dramaturgias representadas pelo CCE/CENDREV [...] Aqui, pode dizer-se que as opções se dividem entre modernos e clássicos, uns e outros grosso modo considerados. Com efeito, com textos escritos no século XX produzem-se 73 espectáculos (54,5%), enquanto que com textos de épocas anteriores esse número é de 61 (45,5%). No caso português, esta relação inverte-se: 16 produções do século XX (43,2%), contra 21 de séculos anteriores (56,8%), sendo o século XVI claramente mais representativo (18 espectáculos que representam 48,6%), sem dúvida pelo gosto assumido pela dramaturgia vicentina. No que respeita aos outros dois países com um peso relativo importante no repertório do CCE/CENDREV, Alemanha e França, é notória a proeminência dos textos do século XX: do lado da Alemanha, é muito significativa a escolha, ou seja, 22 textos que representam 78,6% do total de textos alemães produzidos, enquanto que na França o destaque é menos evidente: 13 produções que representam 52% do total deste país. As dramaturgias “minoritárias” (neste contexto, entenda-se) estão quase todas representadas com textos do século XX.

ACTORES E ELENCOS
Não pode deixar de impressionar a quantidade e diversidade de actores e elencos utilizados nas produções desta companhia. São 310 actores, desde os que apenas participam numa produção até aos que contam por quatro ou cinco dezenas os seus desempenhos. É verdade que nem todos são actores profissionais, ou actores profissionais do elenco fixo da companhia: alguns são actores de outras companhias que com o CCE/CENDREV partilham produções, outros são actores em formação na Escola do CCE/CENDREV, outros são actores amadores, ou “civis” que momentaneamente são actores, também algumas crianças para distribuições que assim o exigem, mesmo alguns técnicos ou cenógrafos ou encenadores vestem por uns meses a mesma pele emprestada. Pouco importa, parece-nos.
Todos, com mais ou menos técnica, mais ou menos “estatuto” ou “vocação”, são o corpo e a alma de tantos espectáculos. E é por serem, todos, artistas desta arte por natureza efémera, que aqui se regista, com um prazer redobrado, os seus nomes [...].
[...] há, apesar desta quantidade e diversidade, um conjunto razoável de actores e actrizes que emprestam aos espectáculos do CCE/CENDREV algo que faz parte (importante) da marca da companhia. Dos 15 elementos que participam em 20 ou mais produções 11 estão ainda hoje no CENDREV. Outros, com menos regularidade, já possuem um significativo estatuto de “pessoa da casa”. E muitos outros voltam de quando em vez a pisar o palco do Garcia de Rezende. Resumindo: quantidade e diversidade dos actores, por um lado; regularidade e continuidade de elencos, por outro.
Ainda neste domínio dos elencos, uma outra possibilidade de leitura desta história, [...] diz-nos que os tais 310 actores e actrizes se “desdobraram” em… 1.253, isto é, o total dos elencos das 134 produções. Produções que utilizaram um elenco médio de 9 actores por cada uma. Número assinalável e que deixa perceber que num conjunto produtivo como o que aqui vemos, muitos dos espectáculos são realizados com mais de uma dezena de actores, em alguns casos com três ou quatro dezenas. Isto para dizer que também a produção do CCE/CENDTREV se tem pautado por utilizar elencos médios numerosos [...]. Em 12 dos anos considerados o elenco é igual ou superior a 50 actores [...].

ENCENADORES
Ao contrário de outras companhias portuguesas, o CCE/CENDREV aposta numa relativa diversidade de direcções artísticas dos seus espectáculos. Com efeito, registam-se os nomes de 38 diferentes encenadores (individuais ou em parceria) e ainda 2 encenações colectivas [...]. Isto não obsta a que se percebam algumas constâncias neste domínio: um grupo de 6 encenadores - Mário Barradas (28), Luís Varela (28), Fernando Mora Ramos (15), Gil Salgueiro Nave (11), Manuel Guerra (7) e Figueira Cid (6) – são responsáveis no seu conjunto por 95 trabalhos, o que equivale a mais de 70% da produção do CCE/CENDREV. Muitos destes trabalhos resultam da actividade destes encenadores na Unidade Infância e Escola de Formação Teatral.

CENÓGRAFOS E FIGURINISTAS
À semelhança do que se passa com os encenadores, também aqui o CCE/CENDREV aposta numa relativa diversidade. Registam-se 30 diferentes trabalhos de cenografia e figurinos (individuais ou em parceria), 9 não registam autoria e 1 tem autoria colectiva [...]. O CCE/CENDREV tem optado por cenógrafos/figurinistas residentes e por isso se percebe que sejam dois deles os que maior número de trabalhos assinam: José Carlos Faria com 30 e Manuel Costa Dias com 25 [...]. São ainda de assinalar os nomes de Vasco Fernando (11), João Vieira (10), Pedro Hestnes Ferreira (6) e Sara Machado da Graça (6). Estes e os primeiros somam 88 trabalhos, o que equivale a mais de 65% da produção do CCE/CENDREV. Muitos destes trabalhos resultam da actividade destes criadores na Unidade Infância e Escola de Formação Teatral.

Publicado no seu livro Centro Dramático de Évora. 25 Anos em Cena (CCE/CENDREV 1975-2000), Évora, Centro Dramático de Évora, 2000. Este texto foi publicado em diferentes partes do livro (pgs. 283-327) como apresentações dos diversos domínios de actividade do CCE/CENDREV. Retirámos as alusões a Quadros, números de página e outros elementos que aqui perderiam o sentido. Ver também os posts Caderno de Trabalho e Adágio, sobre a mesma Companhia.




ADÁGIO 

No momento em que surge, 1990, e durante vários anos, a Adágio é a única revista de teatro com publicação regular em Portugal. Algumas companhias ou grupos editam cadernos de textos mas ligados quase sempre em exclusivo às suas produções teatrais. É o caso, entre outros, do Teatro do Noroeste e da Companhia de Teatro de Almada. O panorama hoje é diferente mas não substancialmente melhor.
A Adágio tem sempre optado por alargar o âmbito de intervenção para lá da actividade do Centro Dramático de Évora. Logo no primeiro número surgem textos de Luciana Stegagno Picchio sobre bonifrates e o teatro de António José da Silva, ou de Gianni Riossi sobre Pina Baush. Um Dicionário de Cultura, e textos sobre música contemporânea e artes plásticas alinham com outros sobre temas próximos da dramaturgia dos espectáculos que produz no momento - desde o seu início e até ao fim da I Série (Inverno de 1992) a Adágio assume-se como uma “revista de arte e cultura”. Em 1990 monta-se A Ilusão Cómica, de Corneille, e a revista dedica-lhe atenção especial.
Nos nove números publicados entre 1990 e 1992 (I Série) o modelo não sofre alterações significativas. Mantém as secções fixas e continua a publicação de alguns importantes textos, quer de divulgação, quer de reflexão. Nomes e temas de uma lista já longa: Eugenio Barba, Pina Baush, Luciana S. Piccio, máscaras, bonecos e bonifrates, Gil Vicente, Liubimov, A. Uberslfeld, Jean Pierre-Sarrazac, João Brites, Büchner, Woyzeck, Butô, Teatro em Itália, e os elementos do CENDREV de colaboração mais assídua: Mário Barradas, Fernando Mora Ramos, José Carlos Faria, Luís Varela, Christine Zurbach e João de Almeida Santos, este desde o início Director da Adágio, cargo que deixa em 1992, no final do primeiro fôlego da revista.
Com a II Série, iniciada só em 1994, depois de um interregno de mais de um ano, a Adágio elege um novo Director, Mário Barradas, renova e melhora o figurino gráfico e surge com um número temático dedicado a Carlo Goldoni, de quem o CENDREV produz A Casa Nova, no ano do bi-centenário da morte do artista italiano (1993). Já em 1992 tinha realizado outro número temático, dessa vez dedicado ao Teatro e Descobrimentos (Nº 8, I Série). A mesma fórmula é retomada no número 14 (Jullho-Setembro 1994), desta vez com a atenção focada em Shakespeare - o CENDREV monta nesse mesmo ano Tudo Bem o que Bem Acaba. O número anterior acentua o cunho mais próximo de um caderno de textos de apoio ao espectáculo, já patente no início da II Série: textos sobre Valle-Inclán, Beaumarchais e Gil Vicente, os autores dos espectáculos da companhia em 1994. Contudo, neste número ainda se inclui um breve mas interessante caderno sobre Meyerhold - Brecht - Anos 30. Extra-revista, o CENDREV edita dois cadernos “parentes” da Adágio: um duplo sobre Vicente a sua Época / Almada e o Auto da Alma (1992), e em 1995 Meio Século de Teatro, 20 Anos de Liberdade - O Testemunho do Cartaz.
Outro número essencialmente temático, dedicado aos 20 Anos de Descentralização Teatral é publicado em Março de 1996 (referente a Julho-Dezembro de 1995). Este é um número charneira: nele, o CENDREV defende a ideia do protagonismo que lhe coube no movimento das companhias e grupos em prol da descentralização do teatro profissional e da conquista de novos públicos, particularmente no período revolucionário pós 25 de Abril de 1974. Este número inclui importantes documentos históricos, como os do I Encontro da ATADT (Associação Técnica e Artística da Descentralização Teatral), de 1979, os de Mário Barradas e Norberto Ávila, então funcionários superiores do Governo no sector teatral, sobre a criação de Centros Dramáticos na província, e despachos ministeriais, sobretudo o da criação do Centro Cultural de Évora. E ainda um importante texto de Mário Barradas (Equívocos), a peça central da revista. Os restantes Testemunhos são de Christine Zurbach, Luís Varela, Fernando Mora Ramos, Manuel Guerra, Norberto Ávila, Pierre-Étienne Heymann, Pedro Alvarez-Ossorio e Marie-Ange Rauch-Lepage. Completam o número da Adágio as rubricas Reportórios (CCE, CENDREV, Teatro da Rainha, Unidade Infância e Escola de Actores) e Referências (Brecht, Bergman, Hubert Gignoux, Strehler), além de um Estudo de Maria Augusta Fernandes (Teatro: custos, eficiência, eficácia, satisfação).
Até Maio de 2000 saem mais 8 números da revista (números 17 a 26). Neste período conhece dois outros Directores: Luís Varela (interino, de 1996 a 1998, dos números 17 a 19) e, de novo, Mário Barradas (do número 20 – 1998 - em diante). O figurino gráfico renova-se com alguma frequência mas os conteúdos e perspectivas mantêm-se, no essencial, os mesmos: (1) informações e opiniões sobre os autores em que se baseiam os espectáculos do Centro, umas vezes com cadernos temáticos, outras alinhando artigos diversos: sobre Strindberg, Shakespeare, Bond, Vinaver, Pirandello, Joahnnes von Saaz ou Garrett; (2) cadernos temáticos que não correspondem necessariamente a projectos de espectáculo, como são os casos: a propósito da BIME (nº 19, Junho-Setembro 1997), com as comunicações e debates do Seminário Tradição e Modernidade no Teatro de Marionetas, organizado pela Licenciatura em Estudos Teatrais da Universidade de Évora e que contou com a participação de Lucília Valente, Philippe Libert, John McCormick, José Russo, Alexandre Passos, Christine Zurbach, Brunela Erulli e Fernando Augusto Gonçalves; ainda sobre a BIME, as Actas do II Seminário Internacional de Marionetas de Évora, com coordenação de Christine Zurbach e Luís Varela; sobre o Colóquio Internacional Bertolt Brecht, em colaboração com a Universidade de Évora, onde participaram, no tema Recepção de Brecht em Portugal e Fora da Alemanha (coordenação de Luís Varela): Maria Manuela Gouveia Delille, Maria de Fátima Gil, Carlos Porto, Enric Ciurans, Juan Antonio Hormingón; no tema Teoria e Prática do Teatro Épico (coordenação de Tiago Porteiro): Pierre-Étienne Heymann, Peter Kammerer e Luís Varela; no tema O Teatro Épico, as outras Artes e a Ciência (coordenação de Christine Zurbach): Maria João Brilhante, José Carlos Faria, Augusto J. S. Fitas e Armando Nascimento Rosa; no tema Traduzir Brecht (coordenação de Maria João Brilhante): Aires Graça, Vera Sampaio de Lemos e Christine Zurbach; e nos temas A Encenação de Brecht em Portugal - Actualidade de Brecht: Maria Helena Serôdio e os encenadores e investigadores presentes (nº 21-22, Julho 1998-Janeiro 1999) - este número contem ainda dois importantes cadernos: Brecht e Teatro de Arte de Moscovo; o bi-Centenário do nascimento de Garrett é objecto igualmente de um caderno, no número 25, de Outubro 1999-Janeiro 2000; nos números 17 (Dezembro 1996), 18 (Março 1997) e 19 (Junho-Setembro 1997) a Adágio publica a maioria das comunicações e conclusões dos Encontros Cultura em Diálogo, promovidos pelo Ministério da Cultura em 1995 e 1996; finalmente, o próprio CENDREV ofereceu-se um caderno, sobre a passagem dos seus 25 anos (nº 26, Fevereiro-Maio 2000), com colaborações de Carlos Alberto Machado, Manuel Guerra, Christine Zurbach, Gil Salgueiro Nave, José Peixoto, Luís Varela, Mário Barradas, Pierre-Étienne Heymann, Jean-Pierre Sarrazac, Richard Demarcy e Fernando Mora Ramos, além das intervenções da sessão comemorativa: Director do Centro, Presidente da Câmara Municipal de Évora e Ministro da Cultura; (3) textos de história e teoria de destacados artistas e escritores, de que destacamos: Jean-François Lapalus, Jean-Pierre Sarrazac, Gonçalo Vilas-Boas, Maria Helena Serôdio, Michel Vinaver, Pedro Alvarez Ossorio, Rui Vieira Nery, Carlos Alberto Augusto, Pierre-Étienne Heymann, Olivier Ortolani, Maria de Lurdes Repas Gonçalves, Patrice Pavis, Silke Hassler, Carlos Porto, Paulo Alves Pereira e Béatrice Piccon-Vallin.
O actual Director da Adágio é Mário Barradas. A Coordenação Editorial é de Christine Zurbach, José Carlos Faria e Mário Barradas e o Conselho de Redacção é composto por Carlos Alberto Augusto, Christine Zurbach, Fernando Mora Ramos, José António Bandeirinha, José Carlos Faria e Mário Barradas.

Publicado no livro por si organizado Centro Dramático de Évora. 25 Anos em Cena (CCE/CENDREV 1975-2000), Évora, Centro Dramático de Évora, 2000: 332-333


CADERNO DE TRABALHO 



Desconheço se existe algum tipo de cálculo para comparar a idade dos grupos e instituições à vida de um ser humano, um pouco como se faz com os cães e gatos. Pela minha parte, mesmo sem recorrer a quaisquer instrumentos de medida e comparação, estou seguro que os 25 anos do CCE/CENDREV têm o peso daquela idade adulta em que os seres humanos sabem deitar contas à vida ponderosamente, libertos já daquela cegueira a que são levados tanto pela saudade do tempo juvenil, como pela temor do fim que irrevogável se adivinha muito perto já. Uma meia idade, portanto. Neste ponto, é possível ao projecto/instituição CCE/CENDREV olhar para trás sem escusados enaltecimentos juvenis nem pensamentos decrépitos. E, por isso que lhe permite esta idade de razoabilidade, projectar-se com firmeza e lucidez no futuro. Gosto de pensar que seja assim, por isso aceitei o convite, em Setembro último, para comissariar e exposição e editar o livro. Sendo, como tenho sido de outros projectos, espectador irregular mas atento e antigo não podia deixar de aceitar o desafio. Desafio que começou logo por me obrigar a fazer das tripas coração para ultrapassar insuficiências de meios e de… tempo. Mas o teatro em Portugal é (ainda) assim. Seguiu-se, e isso é que é importante, a procura de uma ideia, de ideias que suportassem materialmente a análise reflectida do passado e a ideia de futuro. A coisa deu-se, tinha que se dar. Já lá irei. Última etapa do (ainda não terminado, enquanto escrevo) desafio: pôr, pormos, tudo a andar, a ser concretizado .
Então, a ideia, as ideias – Público, públicos. A estética, a ética e a política. Descentralizar e ficar. Repertório. Rostos no anonimato da equipa. Futuro (por esta ordem ou por outra, sempre com o público no princípio – ou no fim). Que a ideia, as ideias, não nascem logo assim, não nascem. Nem ainda se fixaram: continuam a construir-se no meio de obras e máquinas, madeiras e ferros, luzes, cabos, imagens, muitas imagens, rostos – o que mais fica… – printes e leiautes e, e… No fim, a ideia transforma-se em ideia feita. Espero que vos dê algum prazer.
Volto ainda à questão da idade. Por causa das escolhas. Só para lembrar que olhar para trás é sempre seleccionar, com as pequenas “traições” dos desejos, afectos, manias, convicções, dúvidas… E, agora é que vem a idade, tudo balanceado numa mistura de frescura sábia (sim, sim), cansaço e utopia.
Como se há-de perceber, o acto comemorativo tem dois momentos ou produtos complementares: a exposição e o livro que tendes em mãos. Duas palavras sobre este. Não é um programa, nem um catálogo, nem um álbum de luxo: é um caderno de trabalho. Útil. Serve para acompanhar o trabalho – o que se fez e o que ainda não está feito. Por isso, é ele mesmo inacabado. Aguarda contributos – todos (só dispensa o elogio de capela e a crítica que nasce das más digestões). E é um livro de teatro com muitos números, coisa um pouco rara, provavelmente mal vista por muito boa gente do nosso teatro (lá mais para o fim volto a eles, aos números).
A exposição, o livro – o Centro Dramático de Évora – lançam com esta comemoração mais um desafio para o debate claro e rigoroso sobre o teatro da descentralização, sobre tantas das questões do teatro em Portugal. Um desafio que deve tocar as gentes do teatro, estudiosos e universidades, escolas de teatro – quem quiser.
Finalmente, quero usar o pequeno poder que me dá este espaço para algo mais pessoal: agradecer à Ana Pereira e ao Rui Belo a sua amizade e companheirismo, a sua boa disposição, o seu saber profissional e perseverança. E, neles, a todos os que partilharam estas qualidades. Ah, e um beijo para o futuro da Sara B., da Inês O. e da Inês M.
Já agora: arranjem outro para fazer este papel no fim dos próximos 25 anos.

Publicado no livro por si organizado Centro Dramático de Évora. 25 Anos em Cena (CCE/CENDREV 1975-2000), Évora, Centro Dramático de Évora, 2000: 9


CENTRO CULTURAL/CENTRO DRAMÁTICO DE ÉVORA (1975-1999) 

CENTRO CULTURAL/CENTRO DRAMÁTICO DE ÉVORA (1975-1999):
UMA ESTRATÉGIA PARA UM TEATRO PÚBLICO, PARA UM TEATRO COM PÚBLICO(S) (1)

Comecemos por alguns números: o CCE/CENDREV (2) realizou em 25 anos de actividade teatral ininterrupta mais de 4.415 sessões de 129 produções diferentes e atingiu mais de 627.700 espectadores, com uma média de espectadores por sessão superior a 142,2 pessoas. Por ano, apresentaram em média 5 produções diferentes (3) com uma média de 160 sessões (4).
A estratégia que desde a sua fundação orienta esta estrutura de produção teatral profissional integra uma permanente atenção e capacidade de acolher e co-produzir eventos espectaculares de iniciativa autárquica (sobretudo local) e de diferentes estruturas culturais. No período em causa, realizaram-se na Sede do CCE/CENDREV, o Teatro Garcia de Resende, mais de 800 sessões de teatro, música e dança (mais de 30 por ano). Juntando este número ao número médio de sessões realizadas por ano no Teatro, 87,2, temos 117,2 sessões em média, o que dá uma taxa de ocupação anual de 34,9% (5), evidência bem demonstrativa do sucesso de uma estratégia de captação e fixação de públicos. Valerá ainda a pena realçar que num ano de actividade da Companhia e do Teatro se realizam várias exposições, sessões de cinema, debates e colóquios, encontros, animações para o meio escolar, iniciativas com associações populares e profissionais, etc. E, para terminar esta primeira ronda pelos números, frisar que a Companhia sempre cumpriu ao longo destes 25 anos uma permanente actividade de itinerância por toda a Região alentejana, sem descurar também os principais centros urbanos nacionais e a participação em eventos teatrais na Europa, Ásia, América e África. Os números são, uma vez mais, elucidativos: fora do Teatro, a Companhia realizou 2.235 sessões para 342.700 espectadores, com uma média por sessão de 153,3 pessoas; e, não menos importante, realiza por ano, em média, 89,4 sessões: se as juntarmos às 87,2 sessões realizadas no Teatro verificamos que o CCE/CENDREV cumpre em média por ano quase 180 sessões (176,6).
Neste cômputo, merece uma nota especial a actividade ininterrupta - de 1982 até hoje - dos Bonecos de Santo Aleixo. Com efeito, os Bonecos têm uma fatia considerável dos números globais de sessões e espectadores acima mencionados: mais de 380 sessões, com uma média de espectadores por sessão superior a 90 pessoas, num universo total de mais de 35.000 espectadores (6).
Ainda neste domínio, não será desinteressante mostrar a actividade das companhias e grupos da descentralização teatral, onde o CCE não só foi um dos pioneiros do pós 25 de Abril de 1974, como um dos seus mais persistentes dinamizadores. [os Quadros demonstrativos não se publicam aqui, por razões técnicas].
Comparando a actividade das companhias da descentralização (entre 1975 e 1981) e a do CCE no mesmo período, verifica-se a companhia do CCE foi das mais produtivas das que então integravam o teatro descentralizado: a sua audiência média (223,8) foi superior à gerada pelas outras 12 companhias (170,2) (7); o último ano do período em causa, o ano mais produtivo dos 7, o CCE apresentou 6 produções (estreias e reposições) enquanto que a média das restantes 12 companhias foi de 3,4 produções (8); a audiência média por sessão da 12 companhias foi de 139,7 (9) e a do CCE de 150,8.
Esta proeminência do CCE no período 1975-1981 não foi fruto do acaso. A par de uma política de repertório, que abordaremos à frente, o CCE desde cedo se preocupou com a criação e a formação de públicos. No 1º Encontro da ATADT (1979) afirmavam a preocupação em “ampliar a base popular do público espectador”(10). Esta política passava por encontrar canais “orgânicos” para realizar a ligação públicos-teatro: estruturas representativas desses públicos enquanto trabalhadores organizados (das Comissões de Trabalhadores às Autarquias Locais), circuitos de espectáculos nas aldeias e nas escolas, etc. (11). Dizia-se no documento que estamos a seguir: “(…) criar um público será possível na medida em que dum primeiro grau de sensibilização ao acto teatral (…) se passe (…) a outro grau de relação ao fenómeno teatral mais determinado aqui por uma habituação a criar. Serão os espectáculos, será o bater repetidas vezes a zona de acção eleita pelas companhias, que farão da massa, espectadores potenciais, públicos sensibilizados para o teatro. Só poderemos considerar um público como tal quando a sua relação ao fenómeno teatral revelar um mínimo de sistemático, na maior parte dos casos será pela primeira vez, será exactamente nesta primeira impressão que estabelecerá uma relação de atracção ou de repulsa pelo facto teatral”.
Esta política de captação/formação de públicos estava no CCE, como dissemos, estreitamente ligada a uma política de repertórios. Noutro documento (12) do mesmo Encontro da ATADT delineava-se essa política em função do quadro político saído do 25 de Abril de 1974 que proporcionou estratégias de descentralização do teatro. A análise feita apontava para a existência de um público muito afastado do teatro a par de um elevado nível de analfabetismo e a sua heterogeneidade (social e cultural). O repertório para os públicos da descentralização deveria caracterizar-se, segundo o CCE, e citamos o conteúdo do documento, por ser progressista, divertindo e contribuindo para o desenvolvimento do público a todos os níveis; não ser esotérico e corresponder a um projecto de teatro popular que junte na sala toda as classes e camadas sociais interessadas num melhor conhecimento do mundo para o transformar; permitir diferentes graus de entendimento; optar por produções nacionais de qualidade. Noutro domínio, e continuamos a seguir o documento referido, o CCE pugnava por uma relação mais próxima do escritor com o palco e pelo ressurgir do dramaturgo; fazer os clássicos e as grandes obras do teatro moderno (sem pactuar com vanguardismos estéreis), e, sempre, munir o público com meios de reflexão sobre os mecanismos que engendram o presente. E concluíam: o programa de repertório deverá respeitar também as condições técnicas de produção: as condições dos teatros e dos locais de realização das digressões, por exemplo. No documento «Uma contribuição para uma leitura dos clássicos» (13) completava-se esta perspectiva: dar a conhecer grandes obras do passado como contributo para a compreensão do mundo e das suas transformações (através da sua actualização ou reactivação); mostrar o conteúdo social profundo das grandes obras; estudar e expor as contradições, pondo o acento no processo de fazer e não sobre o resultado; realizar os clássicos para o público do nosso tempo.
A Companhia de Évora, ao longo dos seus já 25 anos, soube adaptar este seu ideário teatral, imbuído de uma forte componente de cidadania, à evolução e transformação da sociedade portuguesa, particularmente na sua zona privilegiada de actividade. Os números com que começámos este breve digressão são, por si só, bem elucidativos não apenas do volume de trabalho apresentado mas também do seu impacto junto das populações que continua a servir (14).
Para terminar, não podemos deixar de ver, ainda que brevemente e eventualmente com algumas falhas (15), como se projectou o trabalho teatral do CCE/CENDREV nos repertórios a partir das linhas primeiramente esboçadas e depois adaptadas e aprofundadas com o decorrer dos anos. [o Quadro demonstrativo - Países de Origem e Épocas dos Autores Representados - não se publica aqui, por razões técnicas]. As participações com níveis mais significativos são com textos portugueses (28,2%), franceses (20,2%) e alemães (19,4 %). Os textos do século XX são mais de metade dos textos de séculos anteriores. Daqui pode destacar-se, então, o facto da dramaturgia do CCE/CENDREV privilegiar o continente europeu, onde, para além de Portugal, se dá destaque às fortes dramaturgias francesa e alemã. No caso de Portugal Gil Vicente é o autor mais representado, Bertolt Brecht na área alemã e Marivaux, Molière e Michel Vinaver dividem em partes iguais as maiores participações no caso da França. No caso português, é significativo o facto de o século XVI ter mais representatividade do que o século XX (48,6% contra 40%, respectivamente). Do lado de França, é mais notória a origem de textos do século XX (52%). Da Alemanha o destaque vai também para o século XX, ainda com maior evidência (83,3%).
Uma nota ainda para melhor se perceber onde a necessidade de uma estratégia de conquista e consolidação de públicos se cruza e complementa com a definição de repertórios. Christine Zurbach notava no número da Adágio comemorativo dos 20 anos de descentralização teatral (17) que a “intervenção quantitativamente elevada do repertório traduzido” é porque, “Expressão da universalidade da prática do teatro no cruzamento das culturas, o repertório traduzido pode efectivamente compensar a escassez ou a ausência de um teatro nacional, tanto no presente, como no passado”. E mais à frente acrescentava que esta escolha “produz outro tipo de efeitos, essenciais na coerência de um repertório: Gil Vicente, modelo nacional da comédia renascentista, e Garrett, o iniciador da modernidade teatral, são reflectidos e desmultiplicados pela confrontação com os autores estrangeiros”.
Parafraseando Christine Zurbach (18), diremos que os diversos constrangimentos, mais de ordem material do que ideológica ou estética, não impediram que ao longo de 25 anos um projecto se construísse, com o seu próprio público, seguindo as suas orientações e escolhas artísticas. E não é sem razão que podemos acrescentar que um modelo e uma estratégia para um teatro público, para um teatro com público(s) existe em Évora, confrontando-se sempre com o devir de uma sociedade que também com o teatro cresce e se desenvolve.

Publicado na revista Adágio (número sobre os 25 anos do CCE/CENDREV), Nº 26, Fevereiro-Maio de 2000: 24-35

NOTAS
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(1) Este pequeno estudo é realizado a convite da Direcção da Adágio. Os dados quantitativos (inéditos) aqui apresentados estão ainda em fase de consolidação estatística.
Agradecimentos especiais: à Christine Zurbach e ao Luís Varela pelo seu imprescindível apoio e orientação; à Marlene Charneca pelo seu apoio na pesquisa de informação.
(2) Além das produções do Centro Cultural de Évora (até 1989) e do Centro Dramático de Évora (a partir de 1990, com a junção do Teatro da Rainha ao CCE), incluem-se também aqui as produções com apresentação pública das suas estruturas: Escola de Formação de Actores, Unidade Infância e Bonecos de Santo Aleixo.
(3) 5,16, exactamente.
(4) No Teatro Garcia de Resende e em itinerância.
(5) Considera-se a ocupação de 100% igual a 335 (365 dias do ano menos 30 dias de fecho para férias anuais).
(6) As características dos Bonecos desaconselham a sua apresentação em salas de grande dimensão.
(7) (1.335.992-248.632)/(7.501-1.111)= 170,2.
(8) (46-6)/12= 3,4.
(9) (226.622-27.000)/1.608-179)= 139,7.
(10) “Criação e Formação de Públicos” – Comunicação do CCE ao I Encontro da ATADT, Porto, 1979.
(11) Idem.
(12) “Sobre Repertórios para a Descentralização” – Comunicação do CCE ao I Encontro da ATADT, Porto, 1979
(13) Comunicação do CCE ao I Encontro da ATADT, Porto, 1979.
(14) O aprofundamento deste nosso trabalho poderia, por exemplo, mapear as centenas de localidades visitadas pelo CCE/CENDREV, taxas de incidência por localidade, as relações com grupos de teatro de amadores, com associações culturais e cívicas, etc.
(15) O trabalho de leitura do rico e imenso espólio documental da Companhia não está ainda dado por concluído.
(16) Estamos sempre a considerar não apenas as produções da equipa principal do CCE/CENDREV como também as da Unidade Infância, Bonecos de Santo Aleixo e apresentações públicas da Escola de Formação de Actores.
(17) Artigo intitulado «Sobre repertórios. A propósito de 20 anos de trabalho teatral do CCE/CENDREV», Adágio Nº 15/16, de Julho-Dezembro de 1995, pgs. 46-51.
(18) Op.. cit., pg. 51

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FONTES E BIBLIOGRAFIA
Fontes
CCE
Relatórios de Actividades, 1975 (Três primeiros Trimestres), Mário Barradas
Relatório de Actividades, 1975 - Ano e 4º Trimestre, Mário Barradas
Relatórios de Actividades, 1976 (Janeiro-Junho e Julho-Dezembro), Mário Barradas
Grupo I Escola de Formação de Actores, 1975/76, Mário Barradas e Luís Varela
Síntese de Actividades, Julho 1976 - Julho 1977, Mário Barradas
Relatório de Actividades, 1977, Mário Barradas
Relatório de Actividades, 1978 - 1º Semestre, Mário Barradas
Relatório de Actividades, 1978, Mário Barradas
Relatório de Actividades, 1979, Mário Barradas
“Descentralização teatral e desenvolvimento cultural” – Comunicação do CCE ao I Encontro da ATADT – Associação Técnica e Artística da Descentralização Teatral, Porto, 1979
“Criação e Formação de Públicos” – Comunicação do CCE ao I Encontro da ATADT, Porto, 1979
“Papel das Autarquias” – Comunicação do CCE ao I Encontro da ATADT, Porto, 1979
“Os Grupos Amadores, Escolas do Público” – Comunicação do CCE ao I Encontro da ATADT, Porto, 1979
“Sobre a Formação” – Comunicação do CCE ao I Encontro da ATADT, Porto, 1979
“Sobre Repertórios para a Descentralização” – Comunicação do CCE ao I Encontro da ATADT, Porto, 1979
“Uma Contribuição para a Leitura dos Clássicos” – Comunicação do CCE ao I Encontro da ATADT, Porto, 1979
“A Descentralização Teatral e o Desenvolvimento Cultural” – Comunicação do CCE ao II Encontro da ATADT, Viana do Castelo, 1980
“Sobre a Política Teatral” – Comunicação do CCE ao II Encontro da ATADT, Viana do Castelo, 1980
“s. t.” – Comunicação do CCE ao II Encontro da ATADT, Viana do Castelo, 1980
“s. t.” – Comunicação do CCE ao II Encontro da ATADT, Viana do Castelo, 1980
Relatório Actividades, 1980 - Janeiro-Junho, Mário Barradas
Relatório de Actividades, 1980, Mário Barradas
Relatório para a ATADT - Elementos Estatísticos da Actividade dos Grupos da ATADT (1975-1981), Mário Barradas
Relatório de Actividades, 1981, Mário Barradas e Luís Varela
Actividades, 1982 - 1º Trimestre
Subsídios ao Teatro (Controle mensal/anual), 1982 - Janeiro-Março, Mário Barradas
“Acerca dos Repertórios” – Comunicação do CCE ao III Encontro da ATADT, Almada, 1982
“Formação dos Quadros para a Descentralização” – Comunicação do CCE ao III Encontro da ATADT, Almada, 1982
“Conservação e Divulgação do Património Popular de Natureza Teatral. Os Bonecos de Santo Aleixo” – Comunicação do CCE ao III Encontro da ATADT, Almada, 1982
Subsídios ao Teatro (Controle mensal/anual), 1982 (Abril-Agosto e Setembro-Novembro), Mário Barradas
Subsídios ao Teatro (Controle mensal/anual), Dezembro 1982 - Fevereiro 1983, Mário Barradas
Subsídios ao Teatro (Controle mensal/anual), 1983 (Março-Maio, Junho-Agosto e Setembro-Novembro), Mário Barradas e Luís Varela
Um Ano de Actividade, 1983, Mário Barradas
Relatório , 1984 - 1º Trimestre, Mário Barradas
Subsídios ao Teatro (Controle mensal/anual), Dezembro 1983 - Fevereiro 1984, Mário Barradas
Subsídios ao Teatro (Controle mensal/anual), 1984 (Março-Maio, Junho-Agosto e Setembro-Novembro), Mário Barradas e Luís Varela
Relatório de Actividades, 1985, Mário Barradas
Relatório de Actividades, Setembro 1985 - Fevereiro 1986, Mário Barradas
Relatório - Subsídios Regulares, 1986 - Março-Agosto, Luís Varela
Relatório - Subsídios Regulares, Setembro 1986 - Fevereiro 1987, Luís Varela
Mapa 8 - Balanço e Outras Informações, 1986/87 - 2º Semestre Março-Agosto
Relatório - Subsídios Regulares, 1986 - Março-Agosto, Luís Varela
Relatório - Subsídios Regulares, Setembro 1986 - Fevereiro 1987, Luís Varela
Relatório - Subsídios Regulares, 1987 (Março-Agosto e Setembro-Dezembro), Luís Varela
10 Anos, 1975-1985
Criação Teatral Profissional - Contratos/Programa/Apoios Anuais - Relatório parcelar, até 31/08/1988

CENDREV
Carta/Relatório à Directora-Geral de Acção Cultural , 1/1 a 15/08 de 1990, Mário Barradas
Criação Teatral Profissional - Contratos Bienal/Anual - Relatório Global , 1991, Fernando Mora Ramos e José Russo
Relatório Anual, 1992, A Direcção
Relatório de Actividades , 1993, José Russo, Mário Barradas e Carlos Galiza
Níveis de Audiência das Produções do CENDREV entre 1992 e 1994, Precedido de Estudo Histórico sobre o Teatro Garcia de Rezende, AA.VV. - Centro de Formação da CGT-IN
Relatório de Actividades, 1994, Mário Barradas
Relatório de Actividades, 1995, Mário Barradas
DGESP - Mapas Semestrais de Espectáculos de Natureza Artística, 1º e 2º Semestres de 1996, Marlene Charneca
Relatório de Execução, 1997, Mário Barradas e Fernando Mora Ramos
Relatório de Execução, 1998
Relatório de Execução, Janeiro a Dezembro de 1999 (Relatórios Trimestrais)


BIBLIOGRAFIA
- Passos, Alexandre (1999), Bonecos de Santo Aleixo. As Marionetas em Portugal nos séculos XVI a XVIII e a sua Influência nos Títeres Alentejanos, Évora, CENDREV/Adágio
- Revista Adágio, do CENDREV, do Nº 1 (Nov.-Dez. 1990) ao Nº 25 (Out. 1999 – Jan. 2000)
- Zurbach, Christine (1997), Traduction et Pratique Théãtrales au Portugal entre 1975 et 1988: Une Étude de Cas, Évora (Dissertação apresentada à Universidade de Évora para a obtenção do grau de Doutor em Literatura Comparada)



sábado, julho 19, 2003

O TEATRO DA CORNUCÓPIA E A CRÍTICA. UMA PESQUISA IMPOSSÍVEL? 

1. UMA PESQUISA IMPOSSÍVEL?
A minha pesquisa (1) incidiu sobre a actividade de um dos mais antigos e importantes agrupamentos portugueses de teatro, o Teatro da Cornucópia (2), fundado em 1973, e a análise da crítica teatral às suas criações. A obra da Companhia é por mim analisada através dos seus quase 60 Programas de espectáculo (3). Este material constitui uma das duas personagens que convido a manterem uma relação em cena. A outra personagem chama-se crítica, ou, se se quiser, os críticos teatrais. O acervo documental sobre o Teatro da Cornucópia está consubstanciado em cerca de 400 textos.
A crítica teatral debate-se entre duas ilusões ou impossibilidades: a restituição fiel do vivido espectacular e a compreensão absoluta do sentido original (puro) da obra. A “crítica como projecto de recuperação da verdade de uma obra é um puro não sentido”, diz o pensador Eduardo Lourenço (4). Sob o signo de uma provável impossibilidade se desenhou, pois, esta pesquisa: a provável impossibilidade do exercício crítico que se pratica no confronto com o material fugidio que o espectáculo teatral é.
O encontro do trabalho do Teatro da Cornucópia (5) com a crítica teatral em Portugal é um sinal maior de uma importante mudança nos modelos de apreciação artística, ou, melhor dizendo, nos princípios estéticos e políticos que norteiam a actividade crítica. O carácter inovador dos primeiros espectáculos da Cornucópia deixa a generalidade dos críticos numa espécie de vazio de referências teatrais, sem padrões de comparação, o que provoca tanto o seu endeusamento como a sua mais radical recusa. Estes dois aspectos só por si sinalizam, por um lado, um panorama de readequamento de cânones no interior do esquema existente, isto é, mantendo ainda a mesma perspectiva e critérios essencialmente judicativos; por outro lado, deixa perceber que se inicia uma mudança ainda mais profunda dos cânones artísticos e uma aproximação a diferentes critérios e objectivos da crítica.



2. TEATRO DA CORNUCÓPIA: UM PROJECTO ÉTICO, ESTÉTICO E POLÍTICO
Nos textos dos Programas de espectáculo que o actor e encenador Luís Miguel Cintra, Director da Cornucópia, escreve há cerca de 25 anos, pode perceber-se o que é vital em todo o trabalho artístico da companhia: o teatro é uma questão moral, nesta acepção: uma opção de cidadania, de intervenção, de consciência de princípios. Desde sempre: desde o tempo da sua criação, antes da revolução de 1974, num tempo em que as consciências estavam sob vigilância. O que quer que tenha sido que inspirou o projecto de Luís Miguel Cintra e de Jorge Silva Melo nos idos de sessenta, manteve depois um projecto artístico radicalmente singular que foi e ainda é um dos pilares em torno do qual se repensou esteticamente o teatro em Portugal (6).
Como é que se pode falar deste projecto? A Cornucópia diz-se, antes de mais, pela palavra. A palavra como veículo de sentidos múltiplos mas igualmente como materialidade. Pelo que transmite e pelo que é. As palavras ditas pelos actores da Cornucópia só por eles podem ser ditas. São literalmente uma matéria, uma corporeidade: mesmo que os sentidos pareçam obscuros ou longínquos, inacessíveis, as palavras (e o seu encadeamento), é como se pudessem ser vistas, ocupam espaço como um gesto, um movimento. A palavra é dita como uma mão que se ergue. Quando é preciso dizer o indizível, o sem-sentido, o inominável da nossa condição, quando se discute as saídas, as impossibilidades, quando se fala do teatro: do que ele é e não é, do que pode ser, quando são as palavras que se calhar já não fazem sentido, quando por vezes há tão pouco em que acreditar, quando a consciência sangra, estão os actores frente a frente com o público, cada vez mais desamparados, sem artifícios, sós. A Cornucópia dá-se também pela palavra escrita. Feita da mesma matéria da palavra dita iluminada no palco. Mas esta palavra está no papel para ser lamento, reflexão, sobressalto, dúvida e, sobretudo, arma de arremesso contra a imobilidade das ideias e das consciências. Estas palavras também incomodam. Porque também são feitas daquela matéria que a vida do e no teatro é. A Cornucópia é, pois, um lugar onde a palavra resiste. A Cornucópia que fala incansavelmente das regras do teatro e das regras da vida que no teatro se vêem ou se ocultam pelo jogo em que o teatro é ou finge ser um certo e especial espelho da vida. A Cornucópia também de um impossível projecto estético, ético e político: o teatro num cadinho de pulsões em luta: um teatro político mas um teatro que se recusa a dizer “é assim”. Um teatro que deseja uma comunhão com o público mas que não resiste a empurrá-lo para becos aparentemente sem saída. Um teatro que é uma proposta de vida no tempo dos “homens das latas de conserva”. Por isso, o percurso do Teatro da Cornucópia é uma mistura de mal-estar e de aposta na magia e nas regras do teatro e da vida. E, sempre, uma crença absoluta em que o teatro é o corpo e a alma dos actores, sempre e cada vez mais expostos, entregues a um jogo que se quer progressivamente despojado: os actores como a última possibilidade de redenção. (7)

3. A CRÍTICA E A SUA MISSÃO
O crítico teatral é, antes de mais, um espectador. Confrontado com a presença real dos actores em cena, com os seus corpos expressivos que emitem uma multiplicidade de estímulos, com os envolvimentos plásticos e sonoros, o crítico-espectador não pode socorrer-se de nenhum artificio metodológico ou “profissional” que o proteja dos efeitos da máquina teatral. O crítico interpreta conscientemente estes estímulos de determinada maneira e produz sobre o conjunto um juízo de gosto. O crítico que coloca entre parênteses, no decorrer de um espectáculo, todo o seu ser, a sua condição social e cultural, não existe: é um mito, uma ilusão, ou um desejo epistemológico.
O crítico, contudo, deixa de ser apenas o espectador porque constrói ao longo da sua biografia profissional um corpo de saberes técnicos, de memórias específicas dos espectáculos, a que adiciona retóricas próprias, que o habilitam a exercer de uma maneira qualificada o exercício crítico. Incorpora, então, neste exercício, uma componente objectivável nos seus pressupostos e metodologias, e outra, de natureza subjectiva, mais dificilmente perceptível nos elementos que a constituem. Um desafio que se coloca neste entendimento da crítica é o considerar que as duas componentes podem estar ao mesmo nível de pertinência avaliadora, isto é, considerar a subjectividade do crítico não como um mal necessário a suportar mas uma condição essencial do seu labor. Deste ponto de vista, a subjectividade crítica deveria ser formulada como uma tentativa de aproximação à obra artística no mesmo plano em que esta é construída. O crítico passaria a ser considerado também um parceiro artístico, um especialista que se moveria no terreno movediço da opacidade das obras, de indagação dos seus aspectos ocultos e enigmáticos.
É possível distinguir nas proposições dos críticos portugueses (8) sobre o ofício crítico uma atitude em maior ou menor grau sempre presente. Sintetizo-a na expressão bom senso. Explico: cada um destes profissionais procura escrever sobre cada espectáculo com ponderação, de forma equilibrada, procurando que a sua subjectividade não invada de modo exagerado a análise de cada objecto e a escrita sobre ele. É evidente que a medida deste bom senso é apenas a justa medida que cada um supõe ser a exacta. Outra atitude igualmente generalizada, esta ainda mais do que a anterior, posso reduzi-la apenas a um termo: poder. Os críticos acreditam no seu poder de persuasão. Consideram-se os mediadores todo-poderosos entre os criadores e os públicos. Subjaz a todas estas atitudes um tipo de empreendimento crítico perante o espectáculo teatral que se pode sintetizar assim: o espectáculo de teatro é uma obra artística a desvendar e cabe ao crítico realizar essa missão; para a realizar, consequentemente, o crítico julga possuir um saber equivalente, ou mais poderoso, do que os próprios criadores do espectáculo teatral. Ou seja: o objecto teatral tem uma natureza reconhecível de que alguém se pode apropriar.
Não se detectam na larga maioria desses discursos vestígios de projectos críticos consistentes, isto é, de projectos ancorados em formulações teóricas, estéticas, ou outras, capazes de justificarem a sua existência pela contraposição de programas (os seus) a outros (os dos espectáculos), de projectos capazes de ler a obra de arte a partir das suas próprias formulações artísticas e estéticas, de projectos que em vez do confronto procurem os terrenos da contaminação de ideias. Apesar disto, uma parte considerável dos principais críticos contêm nos seus discursos, distintos entre si, marcas isoladas que podem prefigurar desenvolvimentos de projectos críticos, ou vozes, consistentes.

4. ENCONTROS E DESENCONTROSÉ possível, pois, reconhecer e delimitar tipos diferenciados de percursos e vozes da crítica teatral portuguesa a partir da análise do seu relacionamento com os espectáculos da Cornucópia, isto é, sempre que eles se questionam no interior do universo cornucopiano. Neste universo não é nunca possível uma atitude crítica que se abrigue na indiferença ou no alheamento. É obrigatório realizar sempre uma escolha, procurar um pensamento. Desde a versão mais prosaica do gostar ou não gostar até à cumplicidade de se deixar “sangrar” pelo mesmo desafio. Entre a alegre despreocupação da croniqueta e o investimento intelectual e afectivo do ensaio.
Os críticos que mais investem na análise dos espectáculos formam um conjunto heterogéneo em que se reconhecem principalmente duas vozes: uma predominantemente de aproximação estética, outra de intenção compreensiva. As vozes do primeiro tipo, que se podem incluir numa crítica criativa, usam a linguagem como um artista que procura a comunicação com outro artista, procuram uma aproximação à obra teatral numa linguagem que é ela própria também um modo de “falar teatral”. As outras vozes que se distinguem por uma intenção compreensiva, são vozes de uma crítica analítica. Os seus autores podem ser inscritos no grupo (muito pequeno) dos que possuem uma linguagem de comunicação culta que é posta ao serviço de uma análise de projectos de espectáculos, isto é, daquilo que um espectáculo parece ser numa dada Companhia em função dos seus programas (artísticos, estéticos, sociais, etc.). São também vozes de maior familiaridade com suportes teóricos e que assim se fazem claramente distinguir de outras vozes em que de algum modo também são perceptíveis tentativas de analisar um espectáculo como um projecto.
Neste grupo da crítica criativa e da crítica analítica há uma possibilidade de reconhecimento comum de diferentes vozes: é dominante a mesma ideia de que um espectáculo não pode ser substituído por um discurso sobre ele. Isto implica que é igualmente dominante a tendência para se considerar que o espectáculo teatral não tem um sentido pré-determinado e unívoco que está oculto, e que, portanto, o papel do crítico não é o de decifrador todo-poderoso desse sentido. Estas vozes, nos seus diferentes percursos percebem, pois, a necessidade de estabelecer diálogos com a obra teatral, com a consciência de que o criador está lá todo inteiro na obra feita e de que o crítico não o pode substituir: o crítico é uma sombra do ser teatral. Sabem que ao carácter enigmático da obra só se pode aceder justamente como enigma. E o crítico pode então aceitar ser feito da mesma matéria do espectáculo. Em absoluta oposição estão, claro, as vozes da rendição sem sentido crítico.
Contudo, uma só linha condutora não é suficiente para perceber a constituição destas vozes críticas e o modo, ou modos, como elas operam no quadro cornucopiano. Desde logo é perceptível a divisão entre a corrente impressionista - largamente dominante - e a analítica. Por outro lado, se as vozes da crítica impressionista podem ser consideradas a outra face da crítica-tribunal - judicativa e todo-poderosa, também não deixa de ser verdade que as vozes analíticas (ou as da crítica criativa que fazem par com estas) são por vezes presas de valorações mais próprias da crítica-tribunal; ou que uma voz da crítica impressionista se possa inclinar muito para a atitude de compreensão que é mais própria das vozes analíticas ou criativas.
Em súmula, as vozes impressionistas são tendencialmente judicativas e acreditam nas verdades e valores pré-determinados, enquanto que as de pendor analítico-criativo procuram mais a compreensão e são devedoras de uma procura permanente de sentido. É muito importante, contudo, distinguir bem, quando falo dos modos de aproximação à compreensão de cada obra, o que faz com que as vozes analíticas não sejam exactamente iguais às vozes criativas: a primeira, toma o caminho que lhe diz ser possível chegar à sua verdade (transitória, é certo) porque é possível construí-la teoricamente; a segunda, simultaneamente mais modesta e mais ambiciosa, procura uma fala comum para o mútuo esclarecimento do que por natureza é enigmático e indecifrável, mas mantém como secreta certeza poder contribuir com esta sua atitude para que a obra seja também e sempre um pouco dela.
As classificações ficam sempre aquém das realidades: as vozes interferem umas com as outras, contaminam-se. De um lado, ficarão as que para sempre se sabem devedoras de uma permanente procura de sentido para as criações; do outro, as que se deixam enredar na ilusão de verdade e da sua posse.
Se hoje é possível reconhecer que o Teatro da Cornucópia mantém ao longo da sua história uma coerência dinâmica, isto é, um mesmo tipo de preocupações (éticas, políticas e estéticas) e a procura de uma linguagem artística consentânea com esse tipo de preocupações, em função do tempo e das situações e não de modelos ideais, se tem esta coerência dinâmica, dizia, tal deve-se no essencial às suas convicções e posicionamentos firmes e pouco aos diálogos tecidos com os seus comentadores oficiais, os críticos. São linguagens que não se cruzam porque são intrinsecamente diferentes, como sugiro? Ou a impossibilidade da própria natureza do exercício crítico, que é também consequência da natureza do medium utilizado, a consciência de que há uma desmesura na arte do espectáculo, um investimento criativo que não é passível de “tradução”? Não sei responder cabalmente e com certeza segura. Sei que posso colocar num quadro uma imagem que a Cornucópia desenha de si própria através dos seus enunciados, a auto-percepção da sua imagem, o que a Companhia diz que é ou o que quer ser; ou colocar outra imagem, mais fragmentada, multi-autoral, que é a da crítica como produto de uma variedade de vozes, o que os críticos desejam que a Cornucópia seja ou o que desejam que os outros pensem que ela é.
A generalidade dos críticos ao fim de um tempo de contacto prolongado com os espectáculos da Cornucópia incorporam os temas e as modalidades com os quais a Companhia vai erguendo a sua identidade, uma identidade de incompletude construída numa luta permanente contra a morte, ou num diálogo com ela, na constante reflexão sobre um tempo e uma sociedade que anulam a pouco e pouco as esperanças dos homens. Uma identidade que mistura a esperança e o mal-estar, mas temperada sempre com uma grande teimosia nas regras e na magia do teatro. O teatro que continuará a ser feito na sua grande cave e a ser teimosamente oferecido ao público em formas inteligentes, raras, por vezes estranhas e perturbadoras. Sob uma luz tão diferente daquela que cá fora ilumina as nossas também precárias existências.


___________________

(1) ISCTE - Instituto de Ciências do Trabalho e Empresa, Lisboa. Pesquisa apresentada na obra Carlos Alberto Machado, Teatro da Cornucópia. As Regras do Jogo, Lisboa, editora Frenesi, 1999.
(2) O Anfitrião, de António José da Silva, O Judeu, do Grupo de Letras, foi o primeiro espectáculo dirigido por Luís Miguel Cintra, fundador e Director do Teatro da Cornucópia. Este grupo universitário e o do Ateneu Cooperativo, de 1971, também com Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, foram o embrião que deu origem, em 1973, ao Teatro da Cornucópia, cujo primeiro espectáculo foi O Misantropo, de Molière
(3) Além de diversas fontes complementares, entrevistas a membros da Companhia e a críticos, depoimentos de personalidades teatrais, etc.
(4) Eduardo Lourenço, “Crítica, obra e tempo”, in Eduardo Lourenço, O Canto do Signo. Existência e Literatura, Lisboa, Editorial Presença, 1994: 50.
(5) O trabalho do Grupo de Letras/Grupo do Ateneu Cooperativo/Teatro da Cornucópia, que se inicia em 1969, é enquadrável num movimento informal de renovação, a diversos níveis, do teatro em Portugal. O início deste “movimento” situa-se, sensivelmente, em 1964-65.
(6) O Teatro da Cornucópia não é o único percurso artístico singular no panorama do teatro português deste meio século. O mapa das singularidades estéticas deverá pelo menos incluir O Bando e João Brites, certo período da Comuna e de João Mota, alguns criadores individuais como Rogério de Carvalho, José Manuel Castanheira, António Lagarto, Ricardo Pais, Jorge Silva Melo (mesmo depois de ter deixado a Cornucópia, em 1979), entre outros. O Teatro da Cornucópia é, isso sim, fortemente exemplar.
(7) Cf. Anexo I de Machado, op. cit., sobre o reportório e a actividade do Teatro da Cornucópia.
(8) São 79 os críticos que entre 1973 e 1995 escreveram sobre os espectáculos do Teatro da Cornucópia. Os críticos identificados (70) produzem 416 peças críticas em 55 diferentes jornais e revistas sobre os 57 espectáculos, com uma média de 7,3 críticas/espectáculo. Destes - muitos exercem a crítica ocasionalmente, sem vínculos aos órgãos de imprensa onde escrevem - só um número reduzido se aproxima do pleno dos espectáculos do percurso do Teatro da Cornucópia. Com efeito, apenas 4 registam taxas de cobertura adequadas.


Comunicação apresentada ao 1º Congresso Brasileiro dos Programas de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Abrace - Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, São Paulo, 15 a 19 de Setembro de 1999, publicada na Memória Abrace I, Anais do I Congresso Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas, S. Paulo, Abrace, 2000: 69-74.